Diversas personagens, dois atores. Essa é a premissa de O Mistério de Irma Vap, texto do autor americano Charles Ludlam, que conta as peripécias de Lady Enid. Na monotonia inglesa, a personagem precisa se adaptar à mansão mal-assombrada pelo fantasma da primeira esposa de seu marido, o excêntrico Lord Edgar. Trata-se de comédia do gênero besteirol, caracterizada por seu humor escrachado e, como explicou o ator Mateus Solano: “que não leva a sério nem a si própria.”
A peça consagrou-se nos palcos brasileiros em meados da década de 1980, sob direção da atriz Marília Pêra. A comicidade precisa dos grandiosos atores Marco Nanini e Ney Latorraca, protagonistas da montagem de Marília, ficou marcada no imaginário popular. Devido ao estrondoso sucesso de público, a peça permaneceu em cartaz por 13 anos, tornando-se o espetáculo que mais tempo foi encenado no Brasil, com o mesmo elenco, pelo Guinness World Book of Records, de 2003.
Em 2019, antes do hiato provocado pela atual pandemia, o texto ganhou nova montagem – que estreou no Teatro Porto Seguro –, mas, desta vez, sob a visão do encenador Jorge Farjalla e execução dos atores Luis Miranda e Mateus Solano.
Espiem só como foi nossa conversa a respeito da montagem contemporânea:
Qual a sensação de voltar aos palcos, após o início da pandemia, com O Mistério de Irma Vap?
JORGE FARJALLA: Nos reencontrarmos, para recontar essa estória, é uma celebração! Quando você encontra a sua família na arte é maravilhoso; não que seja uma família sanguínea, mas ela modifica o seu DNA – eu fui modificado por estes dois grandes atores.
LUIS MIRANDA: Essa montagem, na verdade, nasceu em 2018, quando começamos a ensaiar. Farjalla foi dando todas as referências e fomos embarcando junto com ele nesta loucura. E, voltar agora… quando paramos, em 2020, a peça estava um grandessíssimo sucesso; estávamos completando quase um ano em cartaz, mas fomos surpreendidos pela covid-19.
MATEUS SOLANO: Em março de 2020 fizemos uma reunião e vimos que nós éramos responsáveis por todas as pessoas que poderiam assistir à peça: em um lugar fechado, com ar-condicionado. Então, com muita dor no coração, mas também com muita responsabilidade, paramos e fomos cada um para o seu canto. Ainda tiveram dois meses em que a equipe técnica continuou a ser paga, integralmente, porque realmente achávamos que em algum momento aquilo iria se resolver. Mas não… Dois anos se passaram e só agora é que estamos aqui, de volta – com vários protocolos.
LM: Mas acho importante dizer também que, para nós, voltar a fazer teatro, de fato – parafraseando Paulo Gustavo – é um ato de resistência. Em um momento em que a cultura está completamente atacada, bombardeada e sendo jogada em um lugar que não faz parte dela. Voltar com um espetáculo significa que não largaremos o osso, vamos continuar nos comunicando, falando para a plateia aquilo que pensamos e sentimos.
Como foi estrear uma peça que ficou tão famosa nos anos 1980, no Brasil? Tiveram receio de possível comparação e expectativa do público?
MS: De minha parte, só aceitei fazer O Mistério de Irma Vap por causa da direção de Jorge Farjalla. Pensei: “o que será que ele vai fazer com esse texto?”. Nós já fazemos na televisão o que pedem para nós; no teatro eu gostaria que fosse algo a mais; e Farjalla traz esse algo a mais na visão dele – não só com a nossa interpretação, mas trazendo para a cena quatro camareiros. São, na verdade, quatro atores que estão conosco no palco. O barato é que nas montagens anteriores de Irma Vap, as rápidas trocas de figurino (característica marcante na montagem de Marília Pêra) eram escondidas do público. O inovador, agora, é que essas trocas de figurino são reveladas ao público e, assim, faz-se uma grande homenagem ao teatro. Inclusive, há quebras das personagens: há momentos em que vem à tona, em cena, o Mateus e o Luis, revelando que somos atores, travestidos de personagens, e que estamos em uma grande brincadeira, da qual o público é cúmplice.
LM: Acho, também, que o que permeia qualquer peça é ressignificar, isto é, colocar novamente à vista de outra forma. E, dentro dessa montagem, para além de tudo, como Mateus falou, há posicionamentos muito atuais. E, por fim, quando pegamos um clássico como esse, você já está fazendo uma grande homenagem ao que ele foi. O grande barato foi fazer o nosso “Irma”.
MS: E, por conta de seu histórico, é uma peça que traz curiosidade. As pessoas que não assistiram estão curiosas para ver. As que já assistiram vão revisitar esse texto, nos tempos em que vivemos. É rico para todos, até para quem já viu um milhão de vezes.
JF: Se pensarmos, a montagem de Marília [Pêra] não é tão conhecida para as novas gerações! E, mais, como vamos mostrar e espetáculo para essas novas gerações? Uma das coisas que nos perguntávamos, lá no início, era: “para quem estamos fazendo essa peça?”. Tem a classe teatral, mas e o jovem de hoje? Quem faz teatro para esse público? Acho que qualquer peça deve ter um conceito artístico, mas também deve haver algo a mais, para trazer esse pessoal jovem ao teatro. Então, quem assistir ao espetáculo, com esses seis atores vai ver algo totalmente diferente, inusitado e louco. Louco em um estado atual, criticando este tempo porque a comédia está aí para isso, ela abre portas para que nós, enquanto artistas, possamos criticar nossa sociedade. A montagem de Marília [Pêra], não tem absolutamente nada a ver com a nossa. A minha ideia parte da construção da peça a partir de um trem fantasma, por causa de um filme de terror dos anos 80. E quanto às trocas de figurinos reveladas, a ideia era mostrar para a plateia o trabalho desses atores: um ator que muda seu corpo, sua roupa, que cria o ilusionismo na frente do espectador, como um mágico.
Vocês tiveram a oportunidade de conversar com Marco Nanini e Ney Latorraca sobre a peça? Houve essa troca?
MS: Durante a construção não houve. Aliás, em um primeiro momento, fomos instruídos a não assistir nada, a não correr atrás dessas referências. Mas quando construímos o coração do nosso espetáculo, aí, sim, fomos ver todo o material disponível, referências do mundo todo.
LM: Fomos beber nos filmes trashs de terror dos anos 80, fizemos uma visitação a um “trem fantasma”. O espetáculo traz, ainda, uma coisa muito física. Costumo brincar que é uma espécie de maratona com gincana, uma catarse coletiva. E foi muito interessante quando o Ney [Latorraca] e o [Marco] Nanini foram assistir! Eles ficaram maravilhados, gostaram bastante. Porque viram – o que me parece ser a grande função do teatro – outra peça, você nunca está trazendo nada de volta, está sempre recolocando e ressignificando.
Como foi trabalharem juntos, pela primeira vez, no teatro?
MS: Foi um encontro muito gostoso, não só em cena, com as personagens, mas nos bastidores. A gente “se suporta”: damos suporte um ao outro. Acho que essa é uma das coisas mais preciosas que o teatro ensina.
LM: Tem uma coisa bacana nessa nossa dupla: somos muito diferentes. Ontem comentei com o Mateus uma coisa que, para mim, é fundamental: como é bom podermos fazer um espetáculo com as pessoas das quais gostamos. Porque este apoio que damos um ao outro torna o espetáculo ainda mais potente. De uma maneira ou de outra, acho que uma das coisas mais incríveis no teatro é a promoção de encontros. Neste caso, o encontro de dois profissionais que amam o que fazem, que têm disciplina e rigor.
JF: Quando a produção veio e me perguntou: “que atores você chamaria para fazer as personagens?”, disse: “Luis Miranda e Mateus Solano”. Quando nós começamos a trabalhar… são duas figuras com as quais aprendi muito, aceitavam tudo o que eu propunha. Nunca tinha vivido um processo como o de O Mistério de Irma Vap. Sempre tive cem por cento deles. Foi muito especial. Juntar esses dois grandes atores para perpetuar o exercício do “fazer teatral”, esse foi o grande barato; e isso está impresso na montagem. Sou fã número um dos dois, e acho que eles têm uma comunhão fenomenal! Essa é a palavra: comunhão.
Vocês têm projetos futuros para o teatro?
LM: Esta temporada acaba só em julho. Depois de São Paulo e Rio de Janeiro, também vamos para Campinas, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Salvador, Recife e Florianópolis. Depois disso, vou para a televisão.
MS: E eu espero começar um novo projeto teatral. Apesar de ainda continuar contratado pela televisão – não sei exatamente qual será minha agenda –, a princípio, entraria em um novo projeto teatral. Como ainda é algo embrionário, prefiro não dizer de que se trata.
JF: Sou workaholic… estou esperando o “Irma” acontecer com um outro projeto que está por vir. Dou graças a Deus que estou trabalhando – vivemos disso, de arte, impregnando as pessoas de que há algo de belo mesmo dentro dessa loucura que é a vida.
Teatro Sergio Cardoso / Rua Rui Barbosa 153 – Bela Vista – Sp
De 27/01 a 06/03. Quintas, sextas e sábados, 20:30h. Domingos, 17h
À venda na Sympla e na bilheteria.
Vendas: http://www.sympla.com.br
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.