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Foto: Rodolfo Amorim / Divulgação
Foto: Rodolfo Amorim / Divulgação

Luto e perda tratados com graça e leveza

‘Aqui Tem Vida Demais’, no Sesc Ipiranga, acerta ao enfrentar com criatividade – e sem cair nas caricaturas – um tema que durante muito tempo foi condenado no teatro para crianças

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Perda, luto, consciência sobre a morte e medo da finitude da vida. Que tal mais peças para crianças sobre esses temas? Houve um tempo em que papais e mamães saíam indignados das salas, retirando seus filhos do teatro, quando percebiam que o enredo do espetáculo infantil caminhava por esses rumos. Mas hoje se sabe – bem mais do que antes – que teatro para crianças não precisa somente se encher de alegria, euforia e final feliz.

Aqui Tem Vida Demais, em cartaz nas manhãs de domingo do Sesc Ipiranga, em São Paulo, fala de tudo isso e ainda consegue ser alegre, alto astral, divertido. É uma atração própria para esta época do ano, em que se celebram os halloweens, os dias dos mortos, os finados. Aliás, no feriado de Finados, haverá sessão. Que tal?

No enredo, dois irmãos, Mário e Maria, “investigam” a morte de seu cãozinho, procurando entender para onde ele foi e como conseguirão viver sem ele. Essa jornada é árdua, cheia de enigmas, incluindo viver o ritual de enterrar o cão defunto, para, em seguida, querer desenterrá-lo, como tentativa de saber o que já está se passando embaixo de toda aquela terra.

Foto: Rodolfo Amorim

“Acontece com todo mundo.” Assim, logo no início, o texto de Bruno Canabarro (também no elenco) introduz o tema, pela voz em off de uma criança que perdeu a avó. É muito agradável o começo da peça, com projeção criativa de frases numa tela do palco. Um prólogo inteligente e cativante, de muito bom gosto, como aliás será toda a peça dali em diante. Uma canção (sim, os atores cantam e tocam muito bem) complementa a introdução da temática em seus versos, como: “Essa coisa triste que é ter de enterrar…”

Gosto da escolha dramatúrgica de falar de morte a partir do ritual do enterro. Afinal, teatro também é ritual. As crianças entram no tema da morte (e no teatro) pela via da liturgia, do rito. Há culto, norma, cerimônia e regras para os adultos conseguirem lidar com a morte – e a peça deixa isso claro para as crianças. Ritualizar um tema árduo serve de conforto – a vida ensina isso e o espetáculo espertamente se apropriou dessa verdade como premissa da dramaturgia.

Foto: Rodolfo Amorim / Divulgação

No mais, tudo é pura fluência. O espetáculo flui com delicadeza, graça e bom ritmo. O casamento de texto e direção (Rodolfo Amorim) é harmonioso. As escolhas feitas pela encenação são todas ótimas e eficientes. Guarda-chuvas com bonecos acoplados na cúpula (por Edson Gon) choram de verdade, jorrando água na plateia. Tudo a ver. Uma outra canção fala de micróbios, bichinhos da terra, vermes. Tudo a ver. O nome da banda em cena é Bandinha Boa de Morrer. Trocadilho tudo a ver.  Uma personagem explica que jaz não é jazz. Perfeito. Os dois irmãos desfazem juntos uma flor de tricô – quer cena mais simbólica e alegórica sobre o fim? E assim, cena a cena, descobrimos encantados cada acerto de abordagem.

O visual também é bom. Houve harmonia também entre cenografia, figurino e iluminação. A luz de Daniel Gonzalez tem momentos impactantes. Felipe Cruz faz toda alusão possível ao tema em seus figurinos, mas não deixa cair na mera caricatura de festa de Halloween. Ponto alto talvez seja o figurino do peixe que anda de skate em meio a bolhas de sabão por todo o palco.

O diretor Rodolfo Amorim assina também a  cenografia, que tem como destaque o painel de pano bordado que se levanta do chão e vira uma caverna sinistra, com apliques de morcegos e teias de aranhas. E há adereços incríveis, como a bola-relógio ou o esqueleto do cachorro ao final.

As animações de Fernanda Zotovici são deliciosas de se ver, sobretudo quando os personagens estão hilariamente narrando as mortes de animais que já provocaram (baratas, ratos, peixinhos). Nessa cena, aliás, há outro acerto: as crianças da plateia são instadas a responder que perdas já tiveram na vida. Nada como saber a hora certa de chamar a participação do público.

Foto: Rodolfo Amorim / Divulgação

Em suma, o melhor de Aqui Tem Vida Demais é constatar como souberam tratar com leveza de uma tema difícil e ainda muitas vezes visto com desconfiança pelos adultos. Vá sem medo e leve a família toda. Deixei para o fim uma frase-aforismo que pincei do texto e que deve ser a que mais resume o espetáculo, uma boutade carregada de sabedoria: “Morrer é a última parte de viver.” Essa frase, além de tudo, fala a língua das crianças. Tem uma lógica bem direta, fácil de ser compreendida. Mais um achado dentro de um espetáculo todo correto.

Foto: Rodolfo Amorim

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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