Você está na cidade de:
Foto: Roberto Setton
Foto: Roberto Setton

“Memórias do Vinho (Per Bacco)” trata da secura típica do universo masculino que deforma relações

Herson Capri e Caio Blat, sob a direção de Elias Andreato, protagonizam a última peça de Jandira Martini, um diálogo entre os conflitos humanos e a enologia

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Como dramaturga, a atriz Jandira Martini (1945-2024) ganhou reconhecimento nas décadas de 1980 e 1990 com as comédias Sua Excelência, O Candidato (1985) e Porca Miséria (1994), criadas em parceria com Marcos Caruso. Em meio às gargalhadas, uma oportuna crítica social e política pontuava os dois tremendos sucessos de bilheteria que atravessaram anos em cartaz.

A artista, formada pela Escola de Arte Dramática (EAD), também cursou letras em Santos, sua cidade natal, e, na época, buscava diversificar as atividades dentro do teatro. Gostava de ler e sabia escrever. Ela ainda não havia sido descoberta pela televisão – o que ocorreria em 2001 com a personagem Zoraide, na novela O Clone, e faria dela, merecidamente, presença constante no vídeo.

Foto: Roberto Setton

O mais belo exemplar autoral de Jandira, entretanto, foi pouco visto e, sob a direção de Jô Soares (1938-2022), teve carreira discreta nos palcos – apenas uma temporada, em 2008, no finado Teatro Jaraguá. A comédia dramática O Eclipse travava uma reflexão fictícia sobre os limites da arte e do entretenimento entre a atriz italiana Eleonora Duse (1858-1924) e o cozinheiro do hotel em que ela teria se hospedado em São Paulo. Em 1907, a estrela passou pela cidade para as apresentações da peça Hedda Gabler, do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).

Memórias do Vinho (Per Bacco), em cartaz no Teatro Vivo, está muito mais próximo de O Eclipse que de Sua Excelência, O Candidato e Porca Miséria, embora não falte referências políticas em meio à inspiração poética. Trata-se de um dos dois testamentos artísticos deixados pela atriz e autora, que morreu em janeiro vencida por um câncer de pulmão. O outro é Jandira, Em Busca do Bonde Perdido, monólogo autobiográfico em que discorre sobre a consciência da finitude, recém-lançado no Rio de Janeiro, com atuação de Isabel Teixeira e encenação de Marcos Caruso.

Foto: Roberto Setton

Escrito junto de Maurício Guilherme, Memórias do Vinho (Per Bacco) ganhou direção de Elias Andreato e os atores Herson Capri e Caio Blat como protagonistas. É uma história sobre fracassos, aparências mantidas a muito custo e uma secura típica do universo masculino que, ao longo do tempo, deforma as relações. Diante da estrutura convencional de um acerto de contas entre pai e filho há muitos anos afastados, Jandira e Guilherme trabalham o retrato de duas gerações de homens empacadas por acreditarem em um passado que nunca existiu.

O engenheiro aposentado Daniel de Almeida Queiroz (interpretado por Capri) bateu os 80 anos em uma casa de repouso, com o dinheiro contado e distante do filho, que vive desde o fim da adolescência na Austrália. O último encontro dos dois foi há seis anos, no enterro de Laurita, a mãe do rapaz. Agora, Júnior (papel de Blat) voltou ao Brasil e marcou uma conversa na valiosa adega do pai, localizada na mansão hipotecada onde a família morava. Mais que um reencontro para afogar mágoas, ele tem um objetivo que pode recolocar nos trilhos as finanças dos dois.

Foto: Roberto Setton

Desde cedo, Júnior sempre ouviu que aqueles vinhos de rótulos caros seriam a sua herança e chegou a hora de cobrar a promessa. Ele fez carreira no mercado publicitário e, depois dos 40 e divorciado pela terceira vez, quer investir no sonho de se tornar um cineasta. Daniel desconversa o tempo inteiro, e o filho não entende as reações, já que, por maior que seja o apego do pai pelas bebidas, o dinheiro arrecadado tiraria a conta bancária dos dois do vermelho. “Você tratava os seus vinhos como se fossem filhos”, reclama o mais jovem. “São amores diferentes”, responde o outro.

Daniel ganhou do sogro no dia do casamento um Chateaux Margaux, safra 1945, e deu início, quase compulsivo, a uma coleção que lhe garantiu a ilusão de pertencimento a um mundo que não era seu. Parte dela, hoje, decora a adega empoeirada, outra boa quantidade foi consumida, mas o Chateaux Margaux permanece lacrado. A descoberta de um diário, escrito por Daniel ao longo dos anos, revela sentimentos e segredos jamais imaginados por Júnior e faz a trama de Jandira e Guilherme saltar do conflito intimista para os bastidores de contravenções que dialogam com a conjuntura do país.

Foto: Roberto Setton

Pode parecer ingênua a surpresa de Daniel quanto aos deslizes éticos do pai, afinal, tanto dinheiro dificilmente seria acumulado apenas com o trabalho de engenheiro no serviço público. O perfil ambíguo de Laurita também é pouco explorado e praticamente passa ignorado na solução do embate – por mais que várias brechas sejam oferecidas entre as camadas do texto.

Memórias do Vinho (Per Bacco) se propõe a ir além do melodrama familiar – e vai. Existe uma busca pela comunicação, marca persistente da obra de Jandira, que visa alcançar um público mais amplo, inclusive quem não frequenta o teatro. O mundo da enologia se transformou em uma mania e referência de status mesmo para aqueles que não são tão endinheirados assim, mas perseguem a ostentação ao cultivar interesse pelo hábito de beber.

Foto: Roberto Setton

A ideia do texto partiu do produtor Fernando Cardoso, que entende que, para levar as pessoas ao teatro, é necessário reunir outros atrativos para despertar a atenção em torno do espetáculo. Sob o ponto de vista comercial é um achado.

As tantas taças de vinho servidas por Caio Blat despertam os sentidos e quem já está envolvido nos problemas de pai e filho vai naturalmente sendo enredado pela dramaturgia, como se sentisse o efeito do álcool. Para isso, a cenografia, assinada por Rebeca Oliveira, se mostra fundamental. O espectador se vê dentro da adega e perto dos personagens. A opção realista gera incômodo ao ver tantas garrafas sujas de pó e faz comprar a hesitação de Daniel, chegando a acreditar que Júnior possa estar sendo insensível com o pai.

Foto: Roberto Setton

A composição de Herson Capri, um homem bonito e sedutor, ajuda imensamente na empatia do público. O ator imprime uma certa vitimização ao salientar as deficiências da idade e, mesmo duro diante do filho, transmite em, pelo menos, metade da peça uma condição que o coloca mais como coitado que algoz. Fica fácil associá-lo a um perfil típico de sua geração, aquele que fortaleceu a autoestima em cima de um relativo poder e ficou frustrado ao enxergar que o filho não herdaria o mesmo talento.

Um dos grandes atores brasileiros, Caio Blat também é favorecido por seu porte físico, no caso, juvenil, para a construção do papel. O público mais conservador começa enxergando o sujeito irresponsável e sonhador que atropela os sentimentos do pai em nome de um objetivo egoísta. Conforme avança a história, porém, é Blat quem sustenta a dramaticidade do conflito e se torna responsável pela identificação da plateia com o desfecho.

Foto: Roberto Setton

Como um diretor de sutilezas e atento a aflorar a sensibilidade dos intérpretes, Elias Andreato deixa os protagonistas livres para um jogo em que eles mesmos vão se desmascarando em uma busca da naturalidade. Capri e Blat pregam tão bem um certo despojamento que soa familiar e sem pedantismo até mesmo ao espectador mais distanciado da enologia as pronúncias em francês e as referências elitistas sobre a bebida.

Uma peça de teatro em busca de um diálogo abrangente deve carregar sempre a premissa de contar uma boa história. Memórias do Vinho (Per Bacco) é uma abordagem sobre as relações humanas e os desencontros que, com algum esforço e tolerância, podem ser contornados no decorrer da vida. Por isso, a visão de Andreato é fundamental para o resultado. O diretor não procura salientar metáforas além daquelas propostas por Jandira e Guilherme na dramaturgia e reforça o espelhamento entre os atores e a plateia.

Foto: Roberto Setton

Da mesma forma, Capri e Blat não querem aparecer mais que os personagens. Estão a serviço de Daniel e Júnior e sintonizados com a história que decidiram oferecer no teatro. Memórias do Vinho (Per Bacco) não pretende fazer revolução, desafiar estéticas ou levantar assuntos sufocados há décadas. Mas vale lembrar que traumas entre pais e filhos são bastante comuns e costumam atravessar o tempo contaminando futuras gerações. Logo, é importante vê-los abordados dentro de um universo que se propõe a ser múltiplo, como o do teatro.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

Compartilhar em
Sobre
Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

Siga o crítico

InfTEATRO em números

0 peças no site
0 em cartaz
0 colunas
0 entrevistas

Receba as nossas novidades

Ao se inscrever você concorda com a nossa política de privacidade

Apoios e Parcerias

Inf Busca Peças

Data
Preço

Este website armazena cookies no seu computador. Esses cookies são usados para melhorar sua experiência no site e fornecer serviços personalizados para você, tanto no website, quanto em outras mídias. Para saber mais sobre os cookies que usamos, consulte nossa Política de Privacidade

Não rastrearemos suas informações quando você visitar nosso site, porém, para cumprir suas preferências, precisaremos usar apenas um pequeno cookie, para que você não seja solicitado a tomar essa decisão novamente.