Não espalhem por aí porque é segredo, mas o fato é que fui acometido por uma curiosidade fulminante, confesso, porque disseram-me que aquele tal de Ricardo era um personagem clássico, um desses grandes personagens clássicos criados para o teatro e produto das penas do maior dramaturgo de teatro de todos os tempos, disseram-me exatamente isso para mim, então lá fui eu curioso para ver do que se tratava, quem era ele, esse tal de Ricardo-personagem, mas, confesso, avancei com um milhão de senões junto comigo porque me disseram também que o tal do Ricardo-clássico escrito pelo maior de todos para o teatro é um assassino, um contumaz facínora, um monstro que degola a cabeça dos distraídos de plantão, e, como eu sou “do bem”, um ator “do bem”, bonzinho até demais – nada assassino e muito menos um monstro degolador de cabeças – monstro degolador eu não sou! -, já sabia de antemão que não me sentiria representado pelo Ricardo se resolvesse representar o Ricardo, além do que – crime maior! – eu roubaria o trabalho dum assassino, dum monstro, de algum ator degenerado que tirou o seu DRTÊ nas caladas do crime e da contravenção, do assalto a mão armada e do sequestro em cárcere privado, e que precisa trabalhar para contar a sua história, ou melhor, a história dele através da história do personagem que é ele próprio espelhado, do personagem “do mau”, nada a ver comigo que sou “do bem”, um ator “do bem” um anti-degolador de cabeças que precisa entender que se há maldades por todos os lados há também privilégios, e privilégio é coisa restrita para alguns poucos como eu que nasceram sortudos porque são “do bem”, fofos, amantes de pescoços alheios e criados a base de leite de pêra vegano – algo que nem todos nesse mundão tiveram a chance de tomar no café da manhã – nada a ver, enfim, com o Ricardo-do-Mau, portanto – Ufa! Respirei aqui um tiquinho porque me faltou ar, mas vamos prosseguir – atitude digna, proba e empática eu desenvolvi para comigo e disse para mim mesmo em concordância comigo: que eu deixe de bobagens cis-heteronormativas-patriarcais e vá procurar representatividade junto aos meus, ou seja, aos personagens bons e legais, aéreos e solares – nada de terra, escuridão e acordes de suspense, isso não, de jeito nenhum, não é para mim, mas, mesmo assim, confesso – não me cancelem! – mesmo assim, antes de buscar refúgio na companhia de meus colegas fofos de paróquia, segui adiante no escrutínio do Ricardo, porque de tanto que me contaram sobre esse tal Ricardo-clássico, vulgo O Degenerado, filho do maior dramaturgo de todos os tempos, eu resolvi investigá-lo um pouco mais demoradamente, afinal, essa coisa de maldade também pode ser um preconceito da nossa cabeça, não é? vai que tudo não passa de narrativas maldosas e o tal do Ricardo-clássico não é exatamente esse brucutu que pintam por aí – e outra: todos tem direito a uma segunda chance, vai saber se o tal do clássico-Ricardo não se redime no final? então, por isso mesmo, apostando numa redenção cristã, fui direto para as últimas páginas do texto teatral para ver as últimas palavras do tal do personagem clássico (Judas, depois de trair Cristo, pediu absolvição… ou foi Calabar?), enfim, e eis que ele, o Ricardo, diz uma coisa estranhíssima que é mais ou menos assim – “meu reino por um cavalo” – ora, ao invés de erguer as mãos aos céus e implorar pela unção divina que a todos liberta dos pecados cometidos ele simplesmente pede por um cavalo e assume descaradamente que é um baita dum privilegiado que tem por posse um reino todo e pode – outro privilégio – se dar ao luxo de trocá-lo por um quadrúpede relinchante, e, assim, confesso, imediatamente me bateu uma depressãozinha, a certeza de que o Ricardo não era para mim, e ainda que fosse esse tal Ricardo um Ricardo-clássico dei-me por certo de que se tratava de um Ricardo desclassificado incapaz de qualquer sororidade empática, que não me sentiria bem assumindo em meu eu-ator o Ricardo-personagem, afinal, já disse, não sou do mau, além de nunca ter montado num cavalo antes, quanto menos posso afirmar que tenho em meus domínios um reino para trocar por um cavalo, muito mais digno, probo e altruísta, pensei eu, seria deixar esse Ricardo-clássico para outro Ricardo-ator que tenha direitos legítimos de se assumir Ricardo-personagem, algum ator que seja do mau, que saiba andar de cavalo e, enfim, que seja praticamente um senhor de terras feudais cujos dividendos lhe permitam fatiar um pedaço de seu rincão para trocá-lo por um pangaré… mas, enfim, já um pouco irritado com esse tal de dramaturgo clássico que escreveu o clássico-Ricardo – desconfiando cada vez mais da toxidade de ambos – resolvi ler um resumo de tudo antes de ir embora e foi então que veio a bomba: o Ricardo é corcunda e manco, além de ser inglês lá da Inglaterra, coisas que definitivamente inviabilizariam totalmente a ideia de trazê-lo para perto de mim na intenção de vivermos juntos uma experiência de recorte proto-narrativo-emocional nalgum palco de teatro, portanto, muito melhor seria se eu publicasse nas minhas redes sociais algo do tipo: “Chance única: atores assassinos, mancos, corcundas, riquíssimos e que saibam falar inglês (da Inglaterra) e andar a cavalo… Shakespeare os procura!***
***Obs: DRTÊ é imprescindível”
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