Milan Kundera foi-se rir em outros planos. Gosto especialmente da desconfiança desse autor para com toda espécie de lirismo aconchegante que pode mascarar um infinito de perversões e cegueiras. Neste nosso mundão recheado por emojis e frases de efeito, o afeto transbordante é uma perfeita armadilha para o ingresso num território de ignorâncias travestidas de luta comunitária. O coração nunca é confiável, parece nos alertar Kundera, ele nos convida a fazer parte de ajuntamentos que, por melhores intenções que tenham, decretam a falência do senso crítico do indivíduo solitário. O resultado é mais do que óbvio: naufragamos enquanto sociedade.
E o que dizer daqueles que deveriam ostentar olhos de águias para devolver ao mundo uma imagem nua e crua do teatro em que nos meteram a representar e, ao contrário disso, se transformam em paroquianos preocupados em rezar uma missa intramuros, todos afetuosamente irmanados entre si, todos insuportavelmente condescendentes com suas pequenas emoções e problemas de sobrevivência, todos desprovidos de qualquer ética de interferência pública? Falo dos artistas de hoje, dos atores que parecem ocupadíssimos em propagandear seus pequenos talentos de modo a se sentirem pertencidos a alguma coisa que os dê segurança e sentimentos bons (além de alguma previsão para quitar os boletos mensais). O espaço público virou uma extensão do Instagram. O embate com a plateia torna-se agora um chá das 17h protegido de qualquer perigo, sem qualquer dimensão de risco que convide a ambos, ator e espectador, a tropeçar no meio do caminho. E sem risco não há vida democrática, tampouco poesia que valha a pena. Todo regime opressor tem como base a afetuosidade irrestrita entre seus membros, a discordância é punida com a eliminação sumária. O tirano e o funcionário da tirania aplaudem a si mesmos, assim como o ator aplaude a si próprio quando termina o espetáculo embalado pelos aplausos de seus colegas-espectadores. Uma verdadeira confraternização brindada com aquela famosa foto-selfie do fundo do palco que pega a todos com os dentes amarelos reluzindo: elenco e plateia em uma catarse conjunta de caretas felizes.
Milan Kundera foi um exilado, um desterrado de sua pátria natal, passou a vida nesse estado de não-pertencimento… e assim construiu uma obra fincada na interrogação que lhe garantiu um sem número de expulsões de grupos políticos e sociais. Ele era um solitário que enxergava tudo de longe, e quem enxerga de longe sempre enxerga melhor. A miopia está ao lado daqueles que insistem em grudar o nariz ao objeto de análise, em geral protegidos por outros míopes afetuosos que não regatearão justificativas para defender essa condição quentinha de companheirismo comunitário. Se as revoluções são produto de movimentos coletivos, as mais nefastas falências da nossa raça humana foram, sem dúvida, evoluções de um coro ainda maior de alucinados convictos. Uma vez que é impossível sobreviver como um náufrago – e sem negar a força benéfica da coletividade -, como proceder então? Sei lá… Kundera também não sabe. Ele apenas ri dos impasses em que nos enfiamos.
O colírio de que Kundera faz uso para exercer seu ofício é o humor. O riso é, ao mesmo tempo, instrumento demolidor do autoritarismo e também um espelho cruel que não poupa quem se arrisca a erguer as beiradas dos lábios. É difícil rir porque essa atitude sarcástica se volta contra nós que rimos. Mas aí é que está a saída gloriosa do humor: ele é por si mesmo um exílio autoproclamado, um passaporte para a solidão, um bilhete que nos convoca a relativizar as certezas, a duvidar dos consensos, a botar em xeque nós mesmos que rimos. Mas, atenção! Que riso é esse? É aquela gargalhada barulhenta das plateias de mentecaptos que agem feito focas animadas ao sabor dos trejeitos dum “stand-up comedier” que lança aos ventos as piadas mais sem graças do século só para fisgar o cardume de incautos? Evidentemente que não… esse riso aí já descamba para a histeria que é prima-irmã da burrice, da estupidez…, algo bastante próximo da emoção afetuosa do grupo que precisa encontrar parceiros para revolver as tripas numa espécie de conluio hormonal. O riso de que Kundera fala é o riso das entrelinhas, da ironia, do sarcasmo que precisa de um certo trabalho intelectual do interlocutor para percebê-lo. Rir, neste caso, tem ainda um outro agravante: é trabalhoso, demanda tempo e dedicação.
Ando entusiasmados com as figuras insolentes. Kundera é um insolente. E acho que principiarei aqui um Diário da Insolência. Vamos a um primeiro teste:
#Dia 01 – A Insolência Veste Toga – Acusaram um certo ministro do STF de perder o decoro ao participar de um encontro com estudantes que emulava um palanque político. Não é papel de um agente máximo da lei se expor publicamente em suas particulares convicções. Botar o sujeito-juiz à frente da toga é uma evidente atitude de corrupção, desmerecendo a instituição da justiça em prol do indivíduo seu representante, clamavam os indignados. Eu concordo. E levo o exemplo para os atores de hoje. Já imaginaram a gincana ética maravilhosa que seria se o personagem reivindicasse sua importância acima do interesse particular do ator que o usa como um pretexto terapêutico de encontro consigo mesmo? Ora, diriam alguns, esse negócio de personagem é coisa do passado, já estamos evoluídos o suficiente para entender que não existe essa distinção entre coisa representada e o sujeito que a representa. Pois muito bem…, replico eu…, o que vivemos há pouco neste Brejo-Tropycal chamado Brazyl senão a completa implosão entre papel e intérprete através de uma toupeira nazista-miliciana na presidência da república que vestia chinelos em compromissos institucionais e se filmava comendo frango gordurento com os dedinhos para se gabar de “ser ele mesmo quem se é”, conferindo à “velha política” (aquela coisa ultrapassada da representação dos papéis) a razão da nossa {SIC} decadência?
Como diria o famoso dramaturgo de peças ancestrais e ultrapassadas: O Mundo é Mesmo Um Grande Palco... E os bastidores são tão importantes quanto o tablado que sofre a incidência da luz ofuscante (adendo meu).
De pouco adianta gritar um catártico Evoé em uníssono se na sequência disso não houver um lábio solitário vertendo escárnio e ironia pelas beiradas do humor.
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Aqui vai a sugestão de três títulos do Kundera:
“A Brincadeira” , “O Livro do Riso e do Esquecimento” e o célebre “A Insustentável Leveza do Ser”.