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Foto: Thiago Gouvêa
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“Morte e Vida Severina”, da Companhia Ensaio Aberto, coloca no palco Severino envelhecido e atualiza personagem de João Cabral de Melo Neto

Sob a direção de Luiz Fernando Lobo, o musical com canções de Chico Buarque amplia mensagem para idosos que trabalham e lutam contra a miséria

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

“Morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia, de fraqueza e de doença, é que a morte severina ataca em qualquer idade e até gente não nascida”, escreveu o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) entre os tantos versos fortes de Morte e Vida Severina.

A origem desta obra-prima sobre a miséria e a luta pela sobrevivência do povo nordestino, escrita em 1955, gerou um trauma para o autor. Encomendado para um auto de Natal do grupo de teatro carioca O Tablado, o texto frustrou as expectativas da diretora Maria Clara Machado (1921-2001), surpreendida pela complexidade e o realismo. João Cabral não escondeu a mágoa, demorou mais de ano para lançá-lo em livro e quase vetou o espetáculo dirigido por Silnei Siqueira (1934-2013) com canções de Chico Buarque no Tuca, em São Paulo, em 1965.

A montagem, que se tornaria um marco da cultura brasileira, revelou, entre outros nomes, o da atriz Ana Lúcia Torre, em meio ao elenco formado por alunos de diferentes universidades, todos por volta dos 20 anos. “Não tínhamos noção da grandeza do trabalho até perceber que fazíamos parte de um momento histórico”, reconheceu a consagrada intérprete em entrevista recente a este que vos escreve.

Foto: Thiago Gouvêa

Morte e Vida Severina foi ovacionado Festival de Nancy, na França, e fez apresentações em Lisboa, Porto e Coimbra, em Portugal. Foi na França que o poeta, conhecido pela objetividade, deixou transparecer um raro momento de emoção depois de aplaudir uma sessão e teria confessado a Chico Buarque: “Eu não conseguirei jamais ler Morte e Vida Severina sem associá-la com sua música”.

Cabral não se fez de modesto e nem estava equivocado. As músicas do novato Chico ressignificaram a sua obra e a tornaram popular. O auto de Natal rejeitado por Maria Clara ganhou o mundo na base daquela fé de que quando se fala do particular se atinge o coletivo e virou filme em 1977 pelas mãos do cineasta Zelito Viana, especial da TV Globo dirigido por Walter Avancini em 1981 e até uma animação criada por Afonso Serpa em 2010.

Entre cada uma destas realizações, seguiu revisitada constantemente nos palcos. O Grupo Tapa, por exemplo, levou o poema à cena em 1995 e, para dirigi-lo convocou o mesmo Siqueira. O ator Brian Penido Ross, então, com 36 anos, interpretou o protagonista Severino. Mais recentemente, em 2022, o diretor Elias Andreato encenou outra leitura de Morte e Vida Severina no mesmo Tuca com 13 atores e cinco músicos, tendo Dudu Galvão, na época com 37 anos, na pele do personagem principal.

A nova versão de Morte e Vida Severina, sob a direção-geral de Luiz Fernando Lobo e musical de Itamar Assiere, em cartaz no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros, em São Paulo, porém, chama a atenção em um ponto. A montagem da companhia carioca Ensaio Aberto reúne 25 atores e atrizes, quatro instrumentista e traz o ator Gilberto Miranda, de 72 anos, como Severino.

Foto: Thiago Gouvêa

É isto mesmo! Ainda se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia ou até antes de nascer. Severino é o personagem que foge da estiagem seguindo o curso do Rio Capibaribe e, a cada parada, encontra diferentes representações da morte, até chegar ao Recife e ver que a realidade nem sempre escorre na velocidade do sonho.

A escalação de Miranda para o papel principal traz novas subjetividades e atualiza a história. Esta morte vai muito além da morte física e a agonia severina agora, quem sabe, pode ser mais prolongada e não fica limitada ao sertão nordestino. Ela assola o mundo. A fome que mata está nas grandes cidades e, no Brasil, é um desafio diário para quem sobrevive nos centros urbanas, inclusive nas regiões centrais e fora das periferias.

Logo, a fome atinge homens e mulheres idosos que trabalharam a vida inteira e, mesmo aqueles que são aposentados, lutam contra a miséria ou não têm o que comer. O espetáculo dirigido por Lobo amplia o percurso do Severino de João Cabral e não basta mais ele sair do seco sertão e chegar à beira da praia – seja qual for este mar, de águas ou de cimento. A batalha não tem fim e é longuíssima.

Pode gerar um estranhamento ver o personagem interpretado por Miranda, mas, em tempos de debates tão acirrados sobre o etarismo, nada mais real. Os artistas idosos reclamam de falta de trabalho. Existe um outro imenso contingente de idosos que trabalha, trabalha e trabalha, come pouco ou quase nada.

A Companhia Ensaio Aberto foi fundada no Rio de Janeiro em 1992 e, no ano seguinte, estreou O Cemitério dos Vivos, baseado na obra de Lima Barreto (1881-1922), e A Missão, do alemão Heiner Müller (1929-1995), disposta a fortalecer um teatro político. O gênero andava em baixa no Brasil depois da redemocratização com a presença maciça de espetáculos cômicos e experimentais e o foco de resistência foi assumido em trabalhos como Missa dos Quilombos, O Banquete e Olga Benário – Um Breve Futuro, todos conduzidos por Lobo.

Foto: Thiago Gouvêa

Em 2000, a Ensaio Aberto montou pela primeira vez Morte e Vida Severina e, desde lá, os tempos são outros, tendo o Brasil saído, voltado e escapado novamente do Mapa da Fome, como explica Lobo no programa da peça. Nestes 25 anos, a produção de musicais no Brasil atingiu uma maior profissionalização e este efeito se mostra nítido no atual espetáculo, que foi indicado aos principais prêmio e venceu o Shell de melhor música. Existe um cuidado estético que se mostra tão forte quanto o conteúdo político e se revela fundamental para o impacto do resultado.

O cenário assinado por J.C. Serroni é deslumbrante e, entre tantas coisas, constrói uma passarela no fundo do palco em que os artistas atravessam, algumas vezes, como se estivessem em uma procissão. A iluminação de tons fortes criada por Cesar de Ramires impõe o vermelho do fogo e o azul que, se não é do mar ou do céu, colabora para tensionar o ambiente, assim como os figurinos de Beth Filipecki e Renaldo Machado.

Não foi apenas na mensagem que Lobo e a Ensaio Aberto adequaram Morte e Vida Severina ao tempo. Como idealizadores e produtores, eles tiveram a consciência de levar ao palco um musical que, sem perder as características narrativas, dialoga com o que é feito no Brasil de hoje neste segmento. A miséria continua lá, mas é representada com uma força visual que facilita a conversação com o público. Não há mal algum nisso. Não existe uma “americanização” do modelo e tampouco uma glorificação da pobreza. É só uma opção estética que mostra uma compreensão da companhia nesta evolução do segmento.

O mesmo Gilberto Miranda interpretou Severino em 2000 e a volta do ator ao simbólico personagem arremata as intenções do grupo com a encenação. Não se trata de uma remontagem, mas uma sequência da mensagem conectada às evoluções e precarizações do passar nos anos. Miranda envelheceu. Tinha 46 anos e, agora, conta 72. O seu Severino, porém, ganhou outros significados e, diante de todas estas opções, a Ensaio Aberto rejuvenesce às avessas o personagem e confirma que a obra de João Cabral está longe de perder o impacto.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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