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Foto: Kim Leekyung
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Mulheres fortes que a História oficial do Brasil esconde das crianças

Cia. Guarda Chuva encena ‘Heroínas na História’ com sensibilidade e graça, apresentando ao público mirim feitos heroicos praticados pela garra feminina, mas que estão de fora dos livros escolares, ainda que tenham colaborado para mudar rumos e alterar acontecimentos ao longo dos anos em nosso país

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Sim, sou o tipo do crítico que valoriza mais os espetáculos infantis ousados na linguagem e na temática, sem enredos lineares, sem lições de moral, e que rompem barreiras, afrontam tabus, enxergam criança sem subestimá-la. Sou desses. Mas também, admito, quando vejo uma peça feita nos moldes mais tradicionais, para não dizer feita de um jeito antigo, mas competente no seu propósito, criativa dentro do esperado, respeitosa e envolvente, fico igualmente empolgado e talvez até mais emocionado, pois é algo que me surpreende dentro do estabelecido – e isso é raro. Fica dito, com isso, que não condeno indistintamente os que ainda insistem em praticar uma velha fórmula de encenação de censura livre. Só condeno quem faz isso sem talento, sem rigor, sem o mínimo de eficiência. Ser tradicional não é pecado nem nunca será. Ser despreparado, sim.

Foto: Kim Leekyung

Falo tudo isso a propósito do prazer que senti ao ver Heroínas na História, em cartaz até o fim de outubro, no Teatro Alfredo Mesquita, com a Cia. Guarda Chuva e direção de Tato Fischer. Uma atração totalmente previsível e apoiada em clichês básicos do teatro para crianças, mas que faz tudo isso com qualidade e inteligência. Tato nasceu em 1948 e faz teatro desde 1972. É muita estrada – e isso é lindo. Mas vejamos: ele parou no tempo na forma como enxerga e dirige para crianças? Digamos que sim, no sentido de que seus espetáculos – muitos como diretor musical – não revolucionam mais nada. Mas e daí? Quando ele acerta, ele acerta e pronto. Ele faz teatro bom, e não é isso que importa? – claro, é bom desde que tenha nas mãos uma boa ideia, um bom texto, uma boa dramaturgia (como é o caso aqui).

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Trata-se de um solo da atriz Litta Mogoff, que faz todos os papeis da peça, manipula bonecos e objetos (principalmente chapéus), alterna palhaçaria com contação de história, canta, dança e ainda é autora do texto da peça. Realmente uma faz-tudo. Com ela no palco está Thaix Coelho, que na ficha técnica ganha crédito só de sonoplastia, mas faz mais, defendendo a trilha ao vivo com graça e assumindo muitas vezes papel de atriz coadjuvante, não somente de música.

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Uma das chaves para se entender melhor por que achei o espetáculo tão tradicional é observar sua estrutura. A peça começa com uma canção dizendo “Já está na hora, vamos começar?” e termina com outra canção que avisa “Tá na hora de terminar”.  Outra coisa: há mais de um momento criado para estimular a plateia a responder questões propostas. “O que tem na fazenda? Cavalo, vaca, galinha, gato… Quais os alimentos que saem da terra? Batata, cenoura, tomate…” E mais: Toda vez que se introduz nova personagem, a canção é a mesma: “Lalalá, lalalá…” Toda vez que acaba a história de uma das heroínas, a atriz traz para o palco uma grande boneca de madeira para representá-la. Toda vez que o texto tem uma palavra “difícil” (independente, marisqueira, folhas de cansanção, consulado, delator) a atriz entra na tela de um smart phone cenográfico e estimula a plateia a chamar o Gugo (brincadeira com o Google). Ou seja, esses exemplos mostram que dramaturgia e direção caminham juntas no sentido de avançar a trama com recursos bastante utilizados, há décadas, nas peças ditas infantis. Não estão inventando a roda novamente. Fazem o trivial simples, por assim dizer, mas quem não adora um arroz com feijão bem feito e bem temperado?

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Mas isso tudo posto, do que trata a peça, afinal? Ah, nem queira saber como o assunto é maravilhoso… O título já dá pistas e é uma ideia muito boa, tocante, extremamente relevante. É o melhor de tudo, aliás. Seu tema é o que faz dele um espetáculo tão necessário e surpreendente, a saber: mulheres fortes que a história oficial do Brasil não valoriza. “Histórias que tentaram nos esconder e apagar”, como diz o texto certeiro. Maria Quitéria, Maria Felipa, Aracy de Carvalho e Margarida Maria Alves. São algumas das heroínas na História não contada para as crianças nas escolas.

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Quitéria se disfarçou de homem para lutar pela independência do Brasil. Nessa mesma época, Felipa espalhou urticária nos homens para organizar um protesto só de mulheres dentro de um navio português. Aracy manipulava os vistos de famílias judias alemãs para que pudessem fugir para o Brasil na época de Hitler. E Margarida foi a primeira mulher presidente sindical no Brasil. Os jeitos como cada uma dessas fatias de vida surge na peça são deliciosos. Dá um nó na garganta, de tanta comoção. Heroínas na História é a prova de que é possível fazer teatro didático sem ser chato e discursivo, é possível querer “ensinar” encenando, é possível usar o teatro como ferramenta de educação. Basta entender, como Tato Fischer e a cia. Guarda Chuva parecem ter entendido, que sensibilidade, poesia, criatividade e talento são fundamentais. Ser literal, ser raso, ser facilitador, ser preconceituoso, ser catequético e vomitar lições e pregações – não são caminhos que levam a um bom teatro.

Foto: Kim Leekyung

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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