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Acorda! – Foto: SISSY EIKO/DIVULGAÇÃO
Acorda! – Foto: SISSY EIKO/DIVULGAÇÃO

Música e cidadania juntam-se em dois espetáculos grandiosos que ensinam o valor das memórias

CCBB de São Paulo abriga concomitantemente duas pérolas de censura livre, Operilda Cai do Choro e Acorda!, ambas envolvendo crianças e adultos na mesma sintonia memorialística

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Duas experiências empolgantes estão em cartaz para toda a família no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), unidade de São Paulo. E com entrada franca. Abrigou-se ali uma feliz composição de duas atrações impecáveis, o que nos estimula a louvar a sagacidade dos programadores/curadores/dirigentes da instituição. Que memorável inverno de censura livre o CCBB está proporcionando aos paulistanos! Torço para que seja possível levar as duas peças para as outras sedes – Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre e Rio. Os espetáculos são: Operilda Cai no Choro e Acorda! – duas explosões de alegria, graça e musicalidade na forma ‘disfarçada’ de peça de teatro infantojuvenil.

Operilda Cai no Choro – Foto: Joao Caldas Filho

“Quintal, sarau, varal. Ninguém mais sabe o que é isso.” Usando esse mote e essa premissa, Operilda Cai no Choro, escrita por Andréa Bassitt e dirigida por Regina Galdino (a mesma dupla da premiada Operilda na Floresta Amazônica), é peça que tempera delícias saudosistas para os adultos com brincadeiras ludicamente instrutivas para as crianças. É um espetáculo sem ansiedades, sem atropelos. Seu ritmo é o das boas histórias contadas com calma, cadência calculada e muito brilho nos olhos. Andréa nos encanta do começo ao fim, com sua voz potente e ao mesmo tempo acolhedora, com seus gestos precisos, seu carisma inegável. Um agradabilíssimo trabalho de atriz. Técnica apurada de teatro narrativo aliada à leveza de uma intérprete visivelmente apaixonada por sua personagem.

Operilda Cai no Choro – Foto: Joao Caldas Filho

Tudo parece transcorrer no palco como se fosse uma aula de história do Brasil. E, de certa forma, é. Abram o livro no capítulo do Brasil Colônia, da chegada da Família Real Portuguesa, e avancem até o início da República, a era do rádio, o nascimento do primeiro ritmo genuinamente brasileiro, o choro. Escravatura? Também, ainda que não seja uma parte alegre da História. “Mas é bom lembrar para não repetir”, diz o texto.

Só que não. Qual o quê! Aula é na escola. A diretora Regina Galdino cuidou para que a força do teatro imperasse no palco. Sua direção vai na contramão de uma aula chata. Luz, adereços, bonecos, figurinos, a cenografia – tudo contribui harmoniosamente para que o palco seja quintal e seja sarau e tenha varal. E vire até terreiro. E caiba até balanço de play. E mais: que subam agora algumas crianças para as infalíveis cenas de interação com a plateia. Quanto acerto! Assim é Operilda Cai no Choro. Um oásis de afeto nesse mundo turbulento de algoritmos e multitelas. “Hoje em dia, o que mais toca é…? Celular!”, aponta o texto.

Operilda Cai no Choro – Foto: Joao Caldas Filho

Mas na peça o que toca é música. Das boas. Um repertório de antigamente ganhando um viço providencial para entreter as crianças de 2024. Nessa nobre missão, uma figura da ficha técnica de Operilda tem fundamental importância: Chico Macedo, o arranjador e diretor musical. Acomodado prazerosa e elegantemente no palco, ao lado de mais três ótimos musicistas, Chico Macedo faz a música ser soberana a cada cena, a cada número. Clássicos de Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado, Ernesto Nazareth e Pixinguinha, entre outros compositores absolutamente desconhecidos das crianças, são defendidos no palco com o frescor insuspeitado das grandes novidades.

Operilda Cai no Choro – Foto: Joao Caldas Filho

Os adultos se comovem, afinal, é preciso salvar essa memória musical. E não resistem a cantar Carinhoso com Andréa e o quarteto – um momento lindo da peça, pelo que a cena nos revela da aprovação espontânea da plateia à proposta do espetáculo. Enquanto isso, ao lado desse inebriado público de gente grande e saudosa, estão seus rebentos imberbes e pueris, que descobrem sonoridades, brasilidades, versos brejeiros, ritmos dançantes. Descobrem que seu país, tão cheio de cicatrizes fundas, como escreve Andréa Bassitt no programa da peça, também soube transformar choro em música. Como experiência de iniciação musical, a peça deveria ser vista como currículo obrigatório e adotada pelas escolas, sem restrições. Graças à graciosa Operilda, as crianças tecno urbanas da plateia ouvem pela primeira vez palavras como fermata, mazurca, polca, breque, minueto, trinado, fraseado, jongo, lundu, umbigada… Que espetáculo precioso.

Prédio feliz é o que anda bem ocupado

“Uma cidade, para sonhar, precisa estar bem acordada. É a lógica oposta dos humanos, que dormem para sonhar.”  Essa, por sua vez, é a premissa do outro espetáculo em cartaz no CCBB SP, batizado justamente de Acorda!. Após três espetáculos e 25 mil espectadores na janela de um prédio no Minhocão (Elevado Presidente João Goulart), o Grupo Esparrama muda de cenário. E que feliz mudança! Deu bem certo aproveitar as janelas da imponente sede de uma ex-agência bancária no calçadão do velho centro paulistano. Mas escrever que “deu certo” é pouco para o que a gente vê ali durante 50 minutos. Posso garantir que Acorda! ficará para sempre na história dos orgulhos artísticos da instituição. Esses “acordadores” de cidades figurarão na lista dos mais retumbantes sucessos do CCBB.

Acorda! – Foto: SISSY EIKO/DIVULGAÇÃO

Além de ser tão decisiva a força da sólida arquitetura do prédio erigido em 1901, a peça se apoia em outros pilares, os artísticos, tão consistentes quanto o prédio: 1) uma esperta dramaturgia estratificada, desfolhada em etapas, passo por passo, até se desvendarem todas as memórias do edifício (como as crianças adoram esses mistérios e charadas!), 2) a dose certa de interação com a plateia (como nos momentos em que todos devem gritar “Petrifica!” para que a trama avance ou, no bem sacado final, em que as crianças é que criam o personagem decisivo da história), 3) uma direção de arte inesquecível, repleta de bonecos de grande porte e adereços extremamente criativos e surpreendentes, 4) uma trilha de canções fortíssimas, com letras complementares à compreensão do enredo (já estão todas disponíveis nos principais streamings de música do País), e, claro, 5) a potência dos números clássicos de palhaçaria e improviso, que a trupe do Esparrama sabe praticar com tanto talento.

Acorda! – Foto: SISSY EIKO/DIVULGAÇÃO

Mas há mais, muito mais a se enaltecer. Como os figurinos dos três palhaços combinando com a estamparia das malas que carregam. Uma festa de detalhes e bom gosto, com cores e apliques vistosos, prevendo que, por ser um espetáculo de rua, não haveria a contribuição da luz atuando sobre as peças. E mais: O recurso certeiro do texto em fazer os personagens “acordadores”, no início, repetirem várias vezes quem são e o que vão fazer – prevenindo as possíveis dispersões de atenção das crianças da plateia, em se tratando de peça ao ar livre.

O espetáculo Acorda! é engrandecido, ainda, por um efervescente caldeirão de personagens bem construídos. Para citar alguns, como não cair de amores por duas gárgulas tão falantes, Pedruska e Petrônio? E a super-heroína Janete, zeladora que salva prédios com o poder da argamassa do amor? Mais emocionante ainda é o Dragoberto Feliz (trocadilho com o nome do músico, palhaço, ator e diretor Dagoberto Feliz, mestre e amigo querido do grupo). Quando esse dragão surge na fachada do CCBB, a comoção é enorme, pelo impacto visual e pela competência técnica na execução dos efeitos. De arrepiar.

Acorda! – Foto: SISSY EIKO/DIVULGAÇÃO

Nessa farra fantasiosa tão bem orquestrada, já que o assunto é a tristeza de um prédio inabitado, há espaço ainda para nos comover com um recado premente: “Criança nenhuma sem moradia.”  Há que se dar os créditos dessa equipe tão azeitada: Dramaturgia – Bobby Baq e Grupo Esparrama. Direção – Iarlei Rangel. Elenco – Lígia Campos, Kleber Brianez e Rani Guerra. Manipuladores – Evelin Cristina e Paulo Henrique. Direção musical, Trilha Musical e Músicas Originais – Tô Bernado e Rani Guerra.  Bonecos e Adereços Cênicos – Eliseu Weide. Criação de Figurino – Marcela Donato. Uma gente nota mil. Um time que nos acorda para a importância de se preservar memórias e humanizar cidades.

Acorda! – Foto: Bruna Arjona

SERVIÇOS

Espetáculo OPERILDA CAI NO CHORO
Temporada: 28 de junho a 28 de julho de 2024. Dias/Horário: Sextas, sábados e domingos, às 11h. Sessões extras aos sábados, às 16h30. Ingressos: Gratuitos. Classificação: Livre (recomendado para crianças a partir de 5 anos). Local: Teatro (120 lugares). Duração: 50 minutos. Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo. Rua Álvares Penteado, 112 – Centro Histórico. São Paulo. Informações: (11) 4297-0600

Espetáculo ACORDA! Com o Grupo Esparrama
Temporada: De 5 a 28 de julho, sexta-feira a domingo, 15h. De 3 de agosto a 1º de setembro, sábado e domingo, 15h. Entrada Gratuita. Duração: 40 minutos. Classificação indicativa: Livre. Local: Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo . Endereço: Rua Álvares Penteado, 112 – Centro Histórico, São Paulo. Informações: (11) 4297-0600

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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