Quando recebi a notícia de que teria a oportunidade de conversar com ninguém menos que Nathalia Timberg fiquei extasiada. Nathalia é um ícone do teatro brasileiro – embora já a conhecesse pessoalmente, entrevistá-la foi a realização de um sonho. A princípio, nossa conversa ocorreria por telefone, mas logo surgiu a possibilidade de encontrá-la, presencialmente, em São Paulo – que sorte a minha!
Com mais de 70 anos de carreira coroada de sucesso e reconhecimento do público e da crítica, a atriz volta aos palcos – apenas em duas apresentações – com o espetáculo Chopin ou o Tormento do Ideal, ao lado da grande pianista Clara Sverner. Em 2018, tive a felicidade de assistir a este lindo trabalho, o que me fez – à época – ficar tocada por tamanha beleza. Recomendo muito!
Confira nossa conversa exclusiva a seguir:
Como é voltar aos palcos, depois desse hiato de dois anos, e com esse espetáculo?
O espetáculo é muito especial. Ele será realizado pontualmente, pois não está em temporada, mas pode voltar a qualquer momento, faz parte – digamos – do nosso currículo. É uma satisfação grande sempre voltar, porque é uma coisa que eu gosto. Além de eu ser uma admiradora da arte da Clara [Sverner], é uma felicidade nós estarmos reunidas em um trabalho que mescla a palavra e a música. Conceber um espetáculo assim, para mim, é um prazer. Brinco que eu realizo e permito que o público assista! Para quem busca, pelo menos, este tipo de prazer estético, encontrará uma proposta bem palatável.
A peça também será gravada?
A peça gravada é bonita, mas nós não podemos, hoje em dia, sempre querer eliminar o que emana de um espetáculo quando você está presente. Por exemplo, uma peça de teatro gravada serve mais como um documento, mas o que devemos perseguir, é o contato direto. Por que que as pessoas vão a concertos ao invés de ouvir a gravações maravilhosas? O que flui entre uma plateia e um palco, não é a mesma coisa que frui em gravações. Senão, por que continuariam a fazer teatro mundo a fora? Por que as salas de concerto continuam cheias?
O que flui de energia direta, isso não é possível gravar. Eu tenho uma certa rejeição ao termo “presencial”, porque ele nos dá a ideia de outra coisa. Por exemplo, por que você está aqui e não só passou um telefonema? Diga para mim. Você existe. Em pessoa. E essa coisa, graças a Deus, desde os gregos, continua importante. E desde antes dos gregos, qualquer manifestação tribal… entendeu?
Existe, é claro, um enriquecimento das possibilidades de acesso. Mas isso não substitui aquele aporte maior que é a presença. Isso, com as pessoas, nem se fala, mas até com as coisas que parecem inanimadas… Quando você vai ver um quadro, não é a mesma coisa que você ver a reprodução dele em um álbum. Ele [o objeto] fala com você. Uma coisa é você ver uma fotografia maravilhosa da Pietà, outra coisa é você estar em frente à Pietà. Eu, por exemplo, fiquei sentada e não conseguia mais me mover, tal era a minha emoção.
Hoje temos uma tecnologia, mas não adianta, o encontro não tem como se extinguir. A não ser que a natureza humana, bastante autodestruidora, nos leve à destruição da humanidade. Mas enquanto ela estiver aí… existem, hoje em dia, todos esses caminhos tecnológicos para ajudar a ter conhecimento, inclusive, de coisas que não estariam ao nosso alcance. Mas o robô nunca vai substituir um ser humano, em toda a acepção que você possa dar a essa palavra. Então, não tenha medo de que o teatro desapareça, ele sobreviveu a milênios e não vai ser este século, nem os próximos, que vai destruí-lo. Porque isto que acontece, no teatro… a máquina não consegue, até agora, pelo menos!
Ao se tentar definir o que seja a condição das artes cênicas, fala-se em “tocar”. É engraçado que, em presença, mesmo que você não toque fisicamente o outro, o toque existe, pela energia que emana de um ser para o outro. A função do artista, seja ele de que faceta das artes for, é tocar a sensibilidade e a inteligência do outro. Depende da presença, da energia que emana diretamente, e que torna o tipo de manifestação direta imperecível. Agora, não há dúvida de que a técnica tem caminhado, e muito. Este crescimento tecnológico, acrescenta, pode chegar perto, ou até ir além, mas não substitui.
Por que um espetáculo é sempre diferente do outro? Porque a energia da plateia é outra. E o espetáculo flutua, sempre a favor da energia total, que é a grande força física que existe no mundo, não só entre nós [humanos], mas com os animais isso é ainda mais forte. Eles não têm a palavra, então a troca energética não está atrofiada.
Como convencer o outro da importância desta presença? Como convencer o público a ir ao teatro?
Fazendo. Você não vai, retoricamente, convencer ninguém de nada. É mostrar. Se você não fizer teatro, e não tiver acesso, não vai adiantar nada falar. Como é que você vai convencer as pessoas de que qualquer coisa é importante? Fazendo com que elas tenham acesso a isso. Acontece que nós vivemos em uma sociedade cada vez mais preguiçosa. Qualquer esforço que se faz hoje em dia é para diminuir o esforço que alguma coisa causa. Então, enquanto tiver alguém disposto a receber este tipo de mensagem, o teatro vai estar vivo. E você não consegue isso apenas por meio da comunicação verbal.
Para você convencer uma sociedade de alguma coisa, você tem que mostrar, para ela ver se gosta ou se não gosta daquilo. Vai depender da sua capacidade de interessá-la. Senão, você vai ter o discurso que você quiser, mas não vai adiantar nada. No dia que ela se sente envolvida, atraída, por esse tipo de comunicação, você vai ter público. Por outro lado, nós estamos em uma sociedade em que se perde muitas batalhas nesse sentido, porque as pessoas estão desenvolvendo uma espécie de preguiça mental.
Então vai depender da nossa capacidade de… claro, o público diminuiu muito, e vai diminuir mais. Até que nós tenhamos a perseverança de mostrar. Porque enquanto a pessoa não perceber a importância dentro dela, não adianta nada.
Mas eu também não posso querer que isso se mantenha de forma precária… se posso ver o Marlon Brando na tela, por que eu vou ao teatro? Tem que ser feito o melhor, para que a emoção que o público possa vir a sentir, valha a pena ele sair de casa, depois de um dia de trabalho etc., etc. etc. E isso é em relação a tudo. Mas nós temos uma luta inglória, poque hoje em dia tem-se feito sucata da formação das pessoas, então o nível que elas têm de interesse e exigência vai diminuindo… a maioria das pessoas não está com o seu desenvolvimento no ponto de que esse tipo de coisa esteja no seu foco de interesse. É o que eu digo, você procura o que te interessa.
Se a formação das pessoas continuar a ser sucateada… teatro, evidentemente, é algo que o indivíduo não tem formação para procurar. Antigamente o primeiro contato com o teatro era na escola. Então como é que você vai querer que um público tenha interesse de ver se ele não sabe o que é e nunca viu? É a mesma coisa: como você vai poder apreciar uma grande obra de literatura se você não sabe ler?
O que o teatro te ensinou de mais importante?
A ver o mundo. Sabe… eu não faço teatro para me exibir. Eu faço teatro apesar de ter que me exibir. A exibição é uma consequência do que eu quero comunicar para a plateia. É para isso, eu tenho que me exibir para as pessoas poderem me ver, mas não é para me mostrar. Quem vem procurar o teatro para estar em uma vitrine, está errado, bateu na porta errada. É preciso ter rigor. Há pessoas que até chegam a um bom artesanato, mas nunca serão artistas. O artesão é aquele que acaba dominando uma técnica, mas o artista é a alma que vai dentro do artesanato. Procure sempre aqueles que fazem ‘apesar de’, e não ‘para’!
Este, um ensinamento profundo para quem queira se aventurar no mundo das artes, mas também, certamente, é útil para a vida.
Ao fim da entrevista, disseram que Clara Sverner estava chegado para encontrar Nathalia: “Clara está chegando!”, disse, enfática, Nathalia Timberg. E, arrematou: “Uma artista está chegando”.
Teatro Sérgio Cardoso
16 de dezembro, quinta-feira, às 21h.
sympla.com.br/teatrosergiocardoso
Plataforma #Culturaemcasa
19 de dezembro, domingo, às 21h30.
Espetáculo recomendável para maiores de 12 anos.
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.