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O cometa Paulo Gustavo jamais sairá da memória dos brasileiros

Coluna Por Giovanna Sassi

Há uma cidade ensolarada. Ela se deita sobre mares, morros, lagos, calçadões e prédios monumentais. Vista de longe, parece um cartão-postal. Vista de dentro, é um acalanto, um oásis — pulsa com as lembranças de quem a habita e com os sonhos de quem sabe que a vida deve ser tranquila. Porque uma cidade nunca é só um território: é também invenção, imaginário, costuras e descosturas, um mosaico. Essa cidade é Niterói. E parte desse imaginário foi feito por Paulo Gustavo.

Em um país imenso e plural, casas se abriram ao riso e ao sorriso que nasceram aqui, nas ruas e palcos de Niterói. Um riso largo, daqueles que enchem o peito e fazem esquecer por um instante a dureza do mundo. Paulo Gustavo não era só um comediante: era um revolucionário. Um desses artistas que acendem algo na gente.

Eu também nasci aqui. Cresci e me tornei atriz na cidade sorriso. Hoje, como em tantas manhãs de outono, acordei com o sol atravessando as frestas do Flamboiã, aquele que mora na janela do meu quarto desde a infância. Vesti algo leve e caminhei rumo à orla. No trajeto, reencontrei os velhos conhecidos: a Praia de Icaraí com sua moldura azul, a Pedra de Itapuca rompendo o horizonte, o mirante da Boa Viagem na ponta da paisagem.

E, no ponto mais alto do caminho, um disco – ou uma flor – branco pousado diante da Baía: o Museu de Arte Contemporânea. Lá dentro, a exposição Paulo Gustavo — Rir é um ato de resistência.

Fui esperando uma visita curatorial. Saí de lá atravessada por uma experiência. A mostra, dividida em cinco partes, nos reconecta com a presença luminosa de Paulo — presença que nunca se permitiu ser ausência.

A primeira parada, “Uma vida à luz”, anuncia seu destino artístico inevitável. Paulo Gustavo viveu à luz, não apenas sob os refletores do teatro e da TV, mas destinado a iluminar — a luz do gesto generoso, do humor cortante. Artista de alma inteira, sua trajetória é contada por fotos inéditas, vídeos e memórias. Mas há algo ali que escapa às imagens: é o brilho dele.

As fotografias mostram o menino que improvisava plateias na sala de estar, encenando para os adultos da casa. Para muitos de nós — artistas ou não — essa história parece familiar. O que é inédito, no entanto, é a maneira como Paulo fez disso sua força: Sua vida à luz não foi só escolha — foi vocação. Ele transformou em cena as histórias das nossas casas, das nossas mães e filhos. Fez do riso um acalanto e, do afeto, uma revolução.

Mas como ele poderia ser tanto? Não seria ele “só” engraçado? Paulo Gustavo não atuava só com o corpo e a voz. Atuava com afeto. E o afeto, quando verdadeiro, é revolucionário. Ele nos ofereceu o riso como refúgio, como ferramenta, como linguagem. Fez do afeto um ato político.

Essa luz que ele carregou, agora reverbera por toda a cidade. Niterói não foi apenas seu berço. Foi — e continua sendo — personagem de sua história. É impossível pensar em Paulo sem pensar nessa cidade, do mesmo modo que, para nós que aqui nascemos e seguimos, é impossível andar por Niterói sem topar com ele em alguma esquina da memória. Até mesmo quem só passa por visita, esbarra com ele na Rua Ator Paulo Gustavo ou com seu monumento no respiro que é o Campo de São Bento.

Na próxima parada, esbarramos com “O Lúdico e o Humor”. E é curioso pensar como seria possível a gente esbarrar, sem querer, com a própria casa. A princípio, parece que conhecemos o caminho, afinal, temos a chave. Não? Com Paulo Gustavo, aprendi que não é bem assim. Antes de muitos de nós, ele já sabia que o humor é também porto seguro. Humor é abrigo e casa. Dona Hermínia não era só um personagem. Era um espelho. Era nossa mãe, nossa avó, a vizinha do 1001, a tia do interior. Com ela, Paulo nos deu a possibilidade de rir das dores cotidianas com a ternura de um lar. Ele nos presenteou com uma família que, embora fictícia, era mais real do que muitas retratadas pela ficção.

Sem medo de ser popular, Paulo Gustavo foi fundo na essência do que nos une: o afeto. E nos ensinou, entre uma gargalhada e outra, que família não é molde nem cartilha. Família é quem fica, quem escuta, quem ri junto. E rir, nesse contexto, não é superficialidade. É reconhecimento. É política sensível.

Num tempo em que o humor anda desavisado de seus próprios limites, Paulo sabia exatamente porque fazia comédia. Seu riso não era zombaria — era convite. Ele ria conosco, não de nós. E fazia isso com inteligência cortante, com sensibilidade de um contador de histórias, com a alma de quem sabe o valor de narrar.

Ao colocar um casamento gay no centro de um filme que bateu recordes de bilheteria, Paulo Gustavo inscreveu o amor LGBTQIAP+ na sala de estar do Brasil. Mostrou que rir também é lutar. Que rir é, sim, resistir.

Como dizia Freud, o humor é um dom precioso e raro. Paulo Gustavo o possuía em estado de graça. E, talvez por isso, sua ausência hoje nos doa tanto — porque ela não é ausência total. Sua luz, seu gesto, sua risada alta ainda estão aqui. Nas calçadas de Icaraí, nas filas de teatro, no sotaque que atravessa o túnel, no cinema que ri de si mesmo.

E agora, num gesto que parece fechar um círculo de afeto, sua mãe, Dona Déa Lúcia — inspiração maior de Dona Hermínia — se prepara para estrear nos palcos com o espetáculo Meu Filho é um Musical. Uma resposta histórica e profundamente simbólica: a mãe que inspirou milhões de risadas agora homenageia, em cena, aquele que dedicou sua vida a homenagear todas as mães. É o humor respondendo com afeto à saudade, e a arte devolvendo em forma de canção e memória tudo aquilo que Paulo Gustavo nos ofereceu.

Niterói é mais ensolarada por causa de Paulo Gustavo. Assim como o teatro, o cinema brasileiro, os palcos, suas tábuas corridas, as plateias, os sofás das salas de estar e até alguns almoços de domingo. Ele é parte de cada canto que iluminou. Por causa dele, seguiremos rindo, amando e acreditando que, apesar de todas as tentativas contrárias, rir é um ato de resistência.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Sobre
Giovanna Sassi

Giovanna Sassi

Giovanna Sassi é mestrando em artes cênicas e é uma artista extremamente versátil que tem uma carreira sólida no teatro musical. Atualmente, está prestes a entrar no BeetleJuice Musical e já esteve no elenco de ‘Uma Babá Quase Perfeita’ neste ano de 2025. Em 2024, produziu e estreou o musical "Itapuca" em Niterói. A história aborda a formação do povo de Niterói, entrelaçando as narrativas de indígenas. Em 2023, recebeu o convite para participar do musical "Kafka e a Boneca", realizado pelo SESI-SP, sob a direção de Marllos Silva, onde interpretou Dora Diamant, a última namorada do escritor Kafka.

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