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O iconoclasta Antônio Abujamra

Coluna Por Luiz Campos

Antônio Abujamra foi um sujeito de personalidade complexa, um ser cabotino que se recusava a ser aprisionado em uma única categoria. “Abu”, como era carinhosamente chamado por muitos, cultivava diversas personas que criava, revelava e escondia conforme transitava, talvez com maior facilidade, por diferentes grupos e guetos dentro do próprio teatro. Uma figura enigmática, cuja verdadeira face — se é que existiu só uma — talvez apenas os mais íntimos tenham conseguido enxergar.

Independentemente de gostos pessoais, seja ele amado ou odiado, a trajetória teatral de Antônio Abujamra é inegável e significativa. Apenas no teatro, somando suas atuações e direções, ultrapassa-se facilmente a marca de cem espetáculos em toda a sua carreira (1953 a 2015). Onde quer que tenha passado, Abujamra deixou rastros e riscou o chão, seja por sua personalidade, seja por sua criação.

Abujamra iniciou sua carreira em Porto Alegre, em 1953. Desde aquele período, já mantinha contato com o universo da poesia, participando de diversos festivais locais. Não por acaso, ele era tão intenso ao declamar poemas na abertura ou encerramento de seu emblemático programa na TV Cultura, Provocações. Seu primeiro trabalho como ator foi na peça A verdade de cada um [hoje conhecida como Assim é… se lhe parece], de Luigi Pirandello, em uma segunda versão montada pelo Teatro do Estudante de Porto Alegre.

Ainda em Porto Alegre, Abujamra viveu intensamente o movimento teatral da cidade. Sua estreia como diretor ocorreu dois anos após sua primeira atuação, em 1955, com a peça O Marinheiro, de Fernando Pessoa, montada pelo Teatro Universitário. Por vezes, ele se envolvia intensamente em lutas político-culturais de Porto Alegre, buscando avanços e conquistas para os trabalhadores do teatro. Abujamra, ao lado de Fernando Peixoto e outros colegas, foi um dos responsáveis por trazer para a capital gaúcha, a figura de Ruggero Jacobbi, além de contribuir para a criação da Escola de Arte Dramática da Universidade do Rio Grande do Sul.

Em 1958, Abujamra participou do 1º Festival Nacional de Teatro dos Estudantes, em Recife, com a peça A Cantora Careca. Através do festival, conquistou uma bolsa de estudos na Europa, oportunidade que ampliou seu conhecimento teatral. Com o auxílio do poeta João Cabral de Melo Neto, Abujamra estagiou ao lado de Jean Vilar no Théâtre National Populaire (TNP). Após assistir à montagem de Os Três Mosqueteiros em Paris, dirigida por Roger Planchon, trocou sem titubear a capital francesa por Villeurbanne, uma pequena cidade operária onde Planchon estava desenvolvendo seu trabalho.

Para Jean Vilar, o teatro era um serviço público fundamental, tão essencial quanto água, gás ou eletricidade. Ele acreditava que o teatro era responsabilidade do Estado. Planchon, discípulo de Vilar, trazia outra forte influência: Bertolt Brecht. Planchon, influenciado por Brecht, foi responsável por difundir as práxis brechtianas na França. Sob essa influência, Abujamra estagiou no Berliner Ensemble, o teatro de Brecht e Helene Weigel, acompanhando a montagem da peça A Mãe em 1960.

Ao retornar ao Brasil, Abujamra se estabeleceu em São Paulo e logo foi convidado a dirigir significativos coletivos e artistas. Começou com Raízes, da Cia. Cacilda Becker, e seguiu com José, do Parto à Sepultura, no Teatro Oficina, e Antígona, América, com Ruth Escobar. A partir de então, sua ascensão no teatro se tornou cada vez mais evidente.

Entre suas inúmeras contribuições para o teatro, destacam-se: a criação do Grupo Decisão (1963), ao lado de Berta Zemel, Wolney de Assis, Emílio Di Biasi, Sérgio Mamberti, Lauro César Muniz e Antônio Ghigonetto; sua participação no teatro itinerante Teatro Popular Nacional (TPN) de Ruth Escobar, que transformou um ônibus em teatro móvel que percorria periferias de São Paulo e cidades vizinhas; a fundação do Teatro Livre (1967) com Nicette Bruno e Paulo Goulart; sua parceria de sucesso com Antônio Fagundes na Companhia Estável de Repertório (1975); a administração do Teatro Brasileiro de Comédia (1979); a criação do coletivo carioca Os Fodidos Privilegiados (1991); além de inúmeras montagens e produções nas quais foi convidado.

Comparando sua trajetória no teatro e na televisão/cinema, percebe-se que sua participação no teatro foi numericamente superior e, ouso dizer, mais expressiva. No entanto, Abujamra tornou-se amplamente conhecido do público midiático por seu personagem Ravengar, na novela Que Rei Sou Eu?, da TV Globo, e por apresentar, durante cerca de 15 anos, o programa Provocações. Ele próprio reconhecia essa dimensão de sua fama e, em diversas entrevistas, comentava que, após ficar conhecido, qualquer coisa que fizesse o público aplaudia de pé.

“Ontem, depois que terminou o espetáculo, as pessoas estavam aplaudindo demais, me deu uma vontade de falar: ‘De joelhos! De pé eu não quero mais!’, mas não tive coragem.” (Entrevista ao Jornal de Hoje, em 09/11/2008).

Gradualmente, alguns estudiosos começaram a se debruçar sobre essa figura enigmática. Em 2002, Paula Sandroni apresentou a primeira dissertação de mestrado sobre Abujamra pela UNIRIO, com o título Primeiras Provocações: Antônio Abujamra e o Grupo Decisão. Em 2019, 17 anos após o primeiro estudo e quatro anos após o falecimento de Abujamra, eu publiquei minha dissertação de mestrado, realizada pela Universidade Federal de São João Del-rei (UFSJ), posteriormente transformada em livro, intitulada Grupo Decisão: O grupo político teatral paulistano que estava entre o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. Nesse mesmo ano, Ida Vicenzia Flores publicou a biografia Antônio Abujamra: Calendário de Pedra. Em 2023, a sobrinha de Abujamra, Márcia Abujamra, organizou o livro Antônio Abujamra: Rigor e Caos, com diversas contribuições sobre sua carreira. Recentemente, em agosto deste ano (2024), finalizei minha tese de doutorado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, intitulada Antônio Abujamra: Inquietações Brechtianas na Cena Teatral do Brasil, na qual defendo que Antônio Abujamra foi um diretor brechtiano por excelência.

Antônio Abujamra foi, sem dúvida, um expressivo sujeito do nosso teatro brasileiro, combinando a intensidade de seu temperamento com a profundidade de suas concepções artísticas. Sua capacidade de transitar entre diversas produções, estilos e técnicas teatrais, ao mesmo tempo em que mantinha uma forte influência do pensamento brechtiano, fez dele uma figura única e imprescindível para quem teve o privilégio de conhecer e tê-lo por perto. Sua ousadia, irreverência e dedicação ao teatro continuam inspirando novas gerações de artistas e estudiosos.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Luiz Campos

Luiz Campos

Ator, diretor, professor e pesquisador teatral. É integrante fundador da Cia. Los Puercos e também Doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal de São João Del-Rei e possui Licenciatura em Teatro pela Faculdade Paulista de Artes. Realizou, dentre atuação e direção, mais de 40 espetáculos teatrais. Atualmente finaliza o seu segundo doutorado pelo Instituto de Artes da UNESP, também acerca de Antônio Abujamra.

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