O mais importante na tragédia é a ação. As personagens trágicas agem mais do que pensam. Quem pensa por elas é o coro, são as outras figuras que as cercam, é o público que sabe antes das protagonistas desse tipo específico de teatro o que está por vir e tentam, a todo custo, elaborar uma forma de avisar sobre o tombo iminente. Catarse, terror e piedade, advém daí, porque somos parecidos, terrivelmente parecidos com aquele que vemos diante de nós incorrer em equívocos irreversíveis.
No teatro trágico o caráter é moldado pela característica irrefreável de colocar-se em movimento a despeito de qualquer coisa, de qualquer ponderação racional. Por isso a tragédia acontece, porque ninguém neste mundo sobrevive por muito tempo separado da reflexão que a tudo deve relativizar. Portanto, não há aspecto mais pedagógico possível neste tipo de estrutura dramática: quer viver em consonância com o mundo? Pois conhece-te a ti mesmo, depois coloque-se em ação. Do contrário: tragédia.
A personagem que está em cena no Teatro Elevador Panorâmico é uma Medeia que não age, só pensa. Ou já agiu, ou, ainda, acredita ter agido. Ela tampouco conhece a si mesma. Sua ausência de conhecimento se dá pelo excesso de tentativas de descobrir quem se é ao se olhar em um espelho, ao tentar refletir a sua imagem em nós que a vemos. Ao invés de aparecer pingando em sangue, são só os dedinhos das mãos – as extremidades – que estão pintadas em um vermelho quase artificial. Será que ela matou os filhos como adverte o arquétipo grego para vingar-se de Jasão? Impossível.
A imagem que se revela ao lado da Medeia original é a da atriz que a representa, ambas envolvidas em um intervalo de tempo que não se realiza, e, por conta disso, é uma figura estática, encalacrada entre o instante que passou e o agora, e o desejo de dar um único passo para um lado ou para o outro. O resultado é um angustiante estado de preenchimento de ideias, palavras, estados de espírito, ânimos. Todas essas qualidades, porém, são destituídas daquilo que está na tragédia primeira: a ação.
A palavra desta Medeia contemporânea é verbalizada não na procura de explicar o que acabou de fazer, mas para tentar mapear o que é aquilo que se pensa no exato instante em que aparece para o público. É proposital. Porque esta Medeia é a Medeia possível hoje, a Medeia que nos cabe neste tempo de tragédia invertida em que pensamos muito mais do que agimos, ou agimos de forma torta porque imaginamos donos de uma reflexão que nos impele a tudo, exceto a cumprir o trajeto que pavimenta o personagem trágico original: o movimento de realizar algo, o percurso de, de fato, realizar algo.
Uma Medeia pedagógica na mesma medida que a Medeia original: presos na moldura do Instagram que reproduz infinitas imagens de nós mesmos, continuamos a não nos conhecer, continuamos entendendo perfeitamente o percurso do tombo trágico que nos avizinha, mas agora embalado por artifícios externos, por remédios, tecnologia, drogas, fofocas e afins.
Nada se realiza. A Medeia que está em cartaz no Teatro Elevador Panorâmico é a figura trágica que Beckett colocou em cena lá atrás, quando o mundo estava de ponta cabeça e o compasso de espera dividia a atenção do planeta com bombas que explodiam por todo lado. É uma Medeia assustadoramente real e contemporânea porque ela reúne em si a apatia de uma realidade que sufoca a todos. É o último espetáculo da Cia Teatro Elevador Panorâmico naquele teatro que foi a sede do grupo por 20 anos. 20 anos de ação. E agora?
Ninguém age. Estamos encalacrados num hiato do que fomos, do que imaginamos ser agora, ansiando por um passo para frente, para os lados, ou para trás. Somos todos aquela Medeia encurralada. Por que não há uma infinidade de jornalistas na porta do teatro tentando traduzir a razão da entrega de um espaço que por tanto tempo foi sede de um grupo que nos ofereceu trabalhos da mais alta qualidade, que nos apresentou Shakespeare, Tchékhov, Sófocles? Por quê? Por que nós, público, não agimos para defender a permanência do grupo lá, onde está, onde sempre esteve?
A Medeia da Carol Fabri é poderosa porque é também um diagnóstico da impossibilidade de se juntar. Neste mundo empreendedor onde cada um precisa se virar da melhor forma possível, o próprio grupo de teatro se resumiu a um só, a uma só figura, a uma solitária Medeia que não sabe para onde ir, que não consegue se realizar porque está completamente ocupada em pensar sobre si mesma sem conseguir se conhecer, sem conseguir se movimentar. A fábula sumiu, sobrou a atriz com pedaços dela, com pedaços da história para contar. Tudo foi embora.
No entanto, nada é frágil neste espetáculo com texto e direção de Marcelo Lazzaratto. É uma única mulher em cena, uma única atriz que dialoga com um universo de imagens, sons, luzes, cenários que nunca a deixam rendida, mesmo na solidão. É a prova de que o bom teatro, ainda que sobrevivendo na miséria deste nosso mundo, continua a desferir pancadas bem no centro do nariz do espectador.
Esta Medeia, sendo uma anti-Medeia, continua a produzir catarse, terror e piedade, a exigir de nós a compreensão de um estado de coisas que, se não forem sanadas, nos levarão ao abismo, feito cordeirinhos mansos, para o abismo.
Corram para ver! Curta temporada.
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