‘Comitê escondido’ apresenta peça Um Memorial para Antígona, que relaciona tragédia grega à Lei da Anistia
Além da obra de Sófocles, o grupo investigou documentos das sessões do Congresso Nacional que debateram a criação da lei.
Olhar para a lei que inocentou os torturadores da ditadura civil-militar brasileira pelas lentes da tragédia “Antígona”, de Sófocles, é a proposta de Um Memorial para Antígona, do comitê escondido, que estreia no TUSP – Teatro da USP.
O espetáculo tem direção de Vicente Antunes Ramos, que também assina a dramaturgia ao lado de Miguel Antunes Ramos. E o elenco conta com a participação de Danilo Arrabal, Giovanna Monteiro, Julia Pedreira, Joy Catharina, Rafael Sousa Silva, Sheila Almeida e Victor Rosa.
O mito descrito por Sófocles principia com o encontro entre as irmãs Antígona e Ismene na escuridão da noite. Houve uma guerra em Tebas, e Creonte, o governante da cidade, ordenou que o corpo de Polinices – irmão das duas, que marchou contra o governo – não seja sepultado. “Que sua carne seja levada pelas feras e pelos urubus”, ordena o déspota. Quando as irmãs se encontram, já sabem da proibição de enterrar Polinices. Antígona quer desobedecer às ordens e diz que é seu direito. Já Ismene é contrária e responde que a desobediência não vai adiantar.
Esquecer ou enterrar? É a partir dessa oposição entre as irmãs que o espetáculo Um Memorial para Antígona propõe uma reflexão sobre a criação da Lei da Anistia, de 1979. Ao mesmo tempo que perdoa crimes cometidos na luta pela democracia, reintegrando ao jogo político figuras que estavam exiladas e apartadas das discussões da época, o projeto de lei impede – até hoje – a criminalização dos agentes do Estado que praticaram crimes de tortura, sequestro, assassinato e ocultamento de cadáveres na época.
Para criar essa discussão, além da tragédia, o grupo parte de documentos históricos sobre a votação no Congresso Nacional, do voto dos senadores e deputados, dos depoimentos de antigos presos políticos e testemunhos de familiares de militantes mortos e desaparecidos no período. E o trabalho propõe ao público uma reflexão sobre os horrores da ditadura: devemos esquecer e seguir em diante, ou lembrar e enterrar os corpos desaparecidos?
“A peça é sobre memória. Parte da situação ficcional da criação de uma estátua para Antígona, um evento importante, no qual toda a cidade se reúne para rememorar essa personagem, essa história. A questão da construção de memoriais também é central na história do Brasil, na forma como lidamos com os traumas da ditadura militar. Existem pouquíssimos centros de memória no país, ainda mais se compararmos com a Argentina ou o Chile, que tiveram ditaduras próximas a nossa. Isso evidencia uma escolha: a de esquecer para seguir em diante”, reflete o autor Miguel Antunes Ramos.
Com este trabalho, o comitê escondido dá prosseguimento a sua pesquisa cênica em teatro documentário, iniciada em Terra Tu Pátria (2018). Mas aqui todos os documentos que serviram para compor a dramaturgia recebem um tratamento sonoro diferente.
A peça, para o ator Rafael Sousa e Silva, é uma espécie de cantata. “Através do som, buscamos evidenciar outros sentidos, que estão ali, mas que não notamos quando lemos essas palavras. É como se, através do som, a gente pudesse criar fissuras, buracos, e o espectador tem que preencher o que vê e ouve. Trazemos essas palavras à tona, mais uma vez, e essas palavras não são o que esperávamos que fossem, mas aquilo que elas mesmas sabem ser. O som é o modo de ativá-las em cena”, afirma.
Sobre o processo
O processo de criação de Um Memorial para Antígona começou em 2019, e a peça estava programada para ganhar os palcos em março de 2020, mas, por conta da pandemia de Covid-19, a estreia foi postergada. Durante esse tempo, o comitê escondido deu continuidade à pesquisa e criou, em isolamento social, a áudio-peça Antígona Sonora (2021).
“Foi muito duro pra gente ter que parar um processo tão perto da estreia. Ao mesmo tempo, isso permitiu que o projeto amadurecesse. Ainda que distantes, encontramos formas de manter a pesquisa viva. E acho que a peça que vamos estrear agora é muito melhor do que aquela que faríamos em 2020”, comenta o diretor e coautor Vicente Antunes Ramos.
“Acho que o maior mérito do projeto é ter conseguido manter tanta gente junta, por tanto tempo, atravessando esse momento difícil, que foi a pandemia, sem muita perspectiva de futuro. Estrear agora é também um reconhecimento disso. E é totalmente diferente… iniciamos o projeto pensando numa transição política como um ato no futuro, quem sabe quando viria isso. Agora, vamos estrear no início do Governo Lula, com as pessoas gritando ‘sem anistia!’ pelas ruas. Mudou aquilo que pensávamos do trabalho. Mas ele continua 100% atual e necessário.”, completa.
Durante a temporada, todas apresentações de domingo serão seguidas por um debate com convidados que discutirão a Lei da Anistia de 1979 e perspectivas sobre a conjuntura atual. O primeiro debate terá a participação de José Genoino e de Paulo Arantes.
Um memorial para Antígona integra a programação da mostra Teatro Pós-Trauma, que está em cartaz no TUSP e ainda reúne os trabalhos ORESTÉIA.BR, dirigido por José Fernando Peixoto, e Verdade, d’O Tablado, com texto e direção de Alexandre Dal Farra.
Ficha Técnica:
Com Danilo Arrabal, Giovanna Monteiro, Julia Pedreira, Joy Catharina, Rafael Sousa Silva, Sheila Almeida e Victor Rosa
Direção: Vicente Antunes Ramos
Dramaturgia: Miguel Antunes Ramos e Vicente Antunes Ramos
Composição sonora: Mariana Carvalho
Desenho e operação de som: May Manão
Colaboração na criação sonora: Eduardo Joly
Cenário: A. Hideki Okutani
Figurino: Sandra Antunes Ramos
Desenho e operação de luz: Matheus Brant
Projeção: Nina Lins e Thais Suguiyama
Participação na criação: Isabela Bustamanti
Produção: Leonardo Birche
Identidade visual: Gabriel Franco