São inúmeras as formas com que as fichas técnicas dos espetáculos para crianças e jovens nos informam que a dramaturgia daquela peça surgiu a partir de um livro. Baseado em. Inspirado em. Original de, adaptado por. Livremente inspirado em. A partir do romance de. Texto original de. Adaptado do clássico de. Adaptação livre do livro de. Dramaturgia construída com base em. Ideia original de. Reconto da obra de. Releitura da obra de. Texto recriado a partir da obra de.

Esse cruzamento de linguagens sempre foi praticado com fertilidade nas artes em geral. Literatura nos palcos: uma opção sempre em cartaz. Felizmente, os dramaturgos e encenadores de todas as épocas prestigiaram e hoje ainda prestigiam os autores de prosa e verso como fontes para suas criações nos palcos.
A diretora e dramaturga Cristiane Paoli-Quito está nesse time de uma forma muito peculiar – e mais uma vez o público de São Paulo pode conhecer seu método de adaptação de livros. Está em cartaz no Sesc Ipiranga, ‘O Conto da Ilha Desconhecida’, peça baseada em ninguém menos do que um Prêmio Nobel, José Saramago. Seu método? Não adaptar. Isso mesmo, sua escolha é por deixar o texto do livro intacto e muito bem preservado. Mas, claro, sabendo usar a criatividade, não adaptar é também adaptar.

Em todas as suas ‘adaptações’, Quito evita alterar a palavra do autor, principalmente se for um clássico. Ela argumenta que as palavras do escritor certamente são melhores do que as dela. Sendo assim, o elenco é instado a não usar suas palavras próprias, para ter forçosamente de lidar com o universo semântico do autor. Estudam as palavras do texto às vezes à exaustão, até conseguirem se apropriar delas, dizendo-as no palco com clareza e naturalidade. Por mais complicadas que sejam. Por exemplo, na peça atual, que você não pode perder, há a seguinte frase na boca de um personagem: “Mormente estando a atender o colóquio…” Entendeu o que a Quito faz? Uma frase dessas em peça infantil? Mormente?! Para as crianças de hoje?!?! Pois funciona, todo mundo entende, o autor fica homenageado e a trama segue fluente e perfeitamente compreensível. Vá ver para crer. E colete um programa da peça na entrada, pois ali houve o cuidado até de se incluir um glossário breve de palavras mais difíceis, como aldraba, cavername e peúgas.

O livro de Saramago é bom para teatro infantil porque é muito rico em metáforas. É exemplar em dar lições sem precisar despejar mensagens de autoajuda. Tudo é transmitido de forma simbólica e até filosófica. Como conseguir ser o que realmente somos? Quanto de tempo será necessário para cada um empreender a sua busca pela essência de si mesmo? Saramago usa as navegações como comparação, pois navegar exige paciência, esforço, perseverança e… tempo.
Além do incrível jogo de palavras encadeadas como estão no livro, frase por frase, é curioso você perceber as camadas de delicadezas e sutilezas da encenação, que usa como aliados sobretudo os recursos da trilha sonora (direção musical de Josí Neto, que é a pianista em cena) e do desenho de luz (Marisa Bentivegna). Primeiramente note que até os ‘versos’ cantados pelos atores são trechos literais retirados das páginas do livro e que viram canções. Depois, ligue sua antena para os detalhes. Quando o personagem deita e se protege com uma manta, começa um trilha de ninar. Tão sutil e inteligente… Quando profere a pergunta: “Acabou-se?”, começa a bossa da canção jobiniana Wave (Onda), aquela que diz: “Vou te contar…”. Ou seja, não acabou, não. Ainda vão contar mais. E coisas de mar… Quem percebe essas coisas tão lindas da sagaz encenação se encanta de imediato.

O que faz a luz, em favor da narrativa, também é de arrepiar. Uma frase, por exemplo, é pausada por um reticente “contudo…”. Antes que o complemento desse “contudo” se revele, a luz do palco muda. Não é um requinte de sofisticação e cuidado? A cena de gaivotas voando, feita só com efeitos de iluminação, é outro momento incrível. E o desenho de luz, repare, também é decisivo na hora de marcar o início da segunda parte da peça, quando os personagens chegam ao porto para iniciarem a jornada rumo ao que chamam de “ilha desconhecida”. Para mostrar que estão no porto, outra sutileza precisa ser captada pelo público: o tapete, no chão do palco, muda de posição. Basta isso para que outro universo se descortine à nossa frente.
Para dar conta de narrativa tão detalhista, observa-se também que o corpo do elenco não descansa, está sempre alerta, sempre bailando intenções, coreografados com pura leveza, mas muita contundência. Um trabalho primoroso de expressão corporal. Não à toa esse elenco é creditado na ficha técnica como “intérpretes criadores”. São eles: Camila Cohen, Lucas Corbucci e Luiz Felipe Bianchini.

No mais, admire as metáforas, acaricie as metáforas, se permita embalar pelas metáforas. E converse sobre elas, ao final, com suas crianças. As velas são os músculos dos barcos. Louco varrido é o que tem mania de navegação. O barco é a própria ilha desconhecida. E que rei é o nosso, que não nos atende? E quem são as mulheres da limpeza neste nosso mundo? E assim sucessivamente. Assunto não vai faltar. Eu, por exemplo, saí da sessão dominical no Sesc Ipiranga completamente rendido pela seguinte frase da peça e, portanto, de Saramago: “Se gostar é a melhor maneira de se querer ter, então ter talvez seja a pior maneira de gostar.”
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