Sempre que há um assunto da ordem do dia, que começa a aparecer frequentemente como tema de peças de teatro, o risco é grande de todo mundo se cansar ou os espetáculos virarem “o mais do mesmo”. Tipo: Ai, meu Deus, mais outra peça sobre isso?!?! De novo?!
Temos constatado, no teatro para crianças, que muitos encenadores estão encarando a temática da questão de gênero, o que é incrível e, até pouco tempo atrás, inimaginável em palcos de peças infantis. Mas será que o desafio de descobrir novas abordagens para o mesmo assunto tem sido cumprido ou já estamos saturando o tema? Fiquemos, pois, de olho nisso, nós, público e crítica.

Em ‘Denis e a Saga do Abraço’, da cia. paulistana República Ativa de Teatro, a questão de gênero comparece como tema principal – e, glória das glórias, surge lindamente utilizado de forma muito inteligente, poética e criativa. Um caso exemplar de como falar de um tópico tão necessário sem repetir fórmulas, clichês ou militâncias ostensivas. Parabéns a todos os envolvidos por esse acerto. Teremos mais quatro chances de ver o espetáculo, 21 e 22 de maio (quarta e quinta), com duas sessões por dia, no Teatro Flavio Império, no distrito de Cangaíba, zona leste de São Paulo.
O espetáculo conta a história de Denis, que mora com o pai e irmãos. Não há mãe. Denis sempre mata saudades da mãe vendo uma foto dela em que está com determinado vestido, que depois ele acha no armário e se espanta/encanta. “Quando ela usava esse vestido da foto, sempre fazia verão – dentro e fora de mim”, diz o menino, sensível e poético, como, de resto, é todo o texto.

Eis que, num belo dia, ele decide vestir a roupa da mãe. Põe em si o tal vestido que tantas lembranças lhe trazem dela. Um gesto simples e ingênuo que provoca acontecimentos, julgamentos e maledicências. Denis vira alvo de todos que o rodeiam, sobretudo porque decide ir à escola usando o vestido. Mas, ao ser questionado, sua resposta é singela e tocante: “Me sinto abraçado por ela.” Ou seja, é uma criança em busca de afeto.
A peça põe foco nas questões de gênero tão mal compreendidas em nossa sociedade. Por que uma ação tão simples pode gerar tanta polêmica? É só um menino de vestido. Essa frase nos arrebata, em meio a tantas outras bem construídas, nada piegas e com potência de melodrama circense. Isso mesmo. A trupe, esperta e estudiosa, formada por Leandro Ivo, Rodrigo Palmieri, Vivi Gonçalves e Thiago Ubaldo, foi buscar, para dirigir a peça, um especialista em melodrama, Fernando Neves, que criou uma encenação à base de convenções e tipos bem delineados, assim como usou pausas para confidências narradas pelos personagens. Tudo fica claro o tempo todo e não há emoções transbordantes e ‘psicologizadas’ por parte do elenco. O resultado é magnífico.

Outra frase surge com potência de bomba, bem no auge das polêmicas e excessos de julgamento: “Você se sente bem vestido da sua própria opinião?” Denis se sente – e pronto. Mas e você, público que rotula, que sentencia, que pratica preconceitos diariamente, você se sente bem vestido disso tudo que destila pela vida? Isso é o que nos fica do espetáculo. Uma pergunta incômoda, doída e necessária, em que o mesmo substantivo concreto (vestido) vira verbo no particípio (vestido) e nos tonteia de realidade.
Usando como premissa a inocência e, depois, o sofrimento de uma criança, que só queria se sentir abraçada pela mãe ausente, o grupo nos brinda com uma peça que mexe e remexe nas feridas provocadas por valores contraditórios e ambíguos de uma sociedade hipócrita como a nossa. Gosto demais do formato entrecortado da dramaturgia, com cenas fragmentadas, que vão revelando pouco a pouco todo o quadro problematizante detonado por um gesto simples de menino, cujo pai tem orgulho de informar à plateia, brechtianamente: “Na minha casa, temos três regras: nada de falar sobre a mãe, nada de choro e nada de abraços.” Isso justifica a atitude de Denis, ou, pelo menos, a explica. Ele quer o abraço e o afeto negados, simbolizados pela metáfora do vestido da mãe.

“Engole o choro, sua mãe não vai mais voltar, isso é coisa de menina!” É o pai novamente enfiando agulhas no coração da plateia. Destaco, ainda, outra cena muito eficiente, impactante, plástica, visualmente eloquente: os outros atores, diante do protagonista de vestido, vão retirando do cenário panos esvoaçantes como véus e atirando-os contra Denis. Isso causa um efeito que vale mais do que mil palavras. Teatro bom é assim, feito de simbologias, gestos metafóricos, ações sugeridas de forma poética.
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