No jargão teatral, “quarta parede” é a linha imaginária que separa os artistas no palco do público disposto a mergulhar em um universo fantasioso. “Derrubar ou quebrar a quarta parede” significa buscar uma comunicação e estabelecer uma proximidade a ponto de o espectador, incentivado por atores e atrizes, romper a ilusão cênica.
Nos últimos anos, a interação entre artistas e plateia se tornou tão comum que acabou transformada em clichê. O recurso virou ferramenta de espelhamento, por exemplo, nos incontáveis monólogos baseados em experiências reais. Tais montagens, embaladas em questões políticas, sociais e comportamentais, por vezes, minimizam o engajamento e só reforçam o ego dos criadores.
Dirigido por Bruno Guida e protagonizado por Marisa Orth, o espetáculo Bárbara teria ferramentas de sobra para cambalear nas ciladas em torno da “quebra da quarta parede”. A dramaturgia construída por Michelle Ferreira é inspirada no livro A Saideira, escrito pela jornalista Barbara Gancia, que narra a sua batalha contra o álcool. Só que, neste caso, a escolha de colocar a atriz, tão popular e carismática, em um diálogo com o público potencializa as qualidades de uma montagem que, apesar do tema pesado, explora sutilezas que a tornam palatável.

A encenação de Guida é totalmente calcada no jogo estabelecido entre Marisa, intérprete com pleno domínio de diferentes registros, e a plateia. Na abertura do monólogo, em cartaz no Teatro Bravos, em São Paulo, a protagonista quebra a hierarquia a tal ponto de implorar às pessoas que desliguem os celulares e explica que o que será visto dali para a frente não é uma comédia, embora muitos, quem sabe, darão risadas e, se for para o bem de todos, não há problema algum nisto.
O prólogo, à primeira vista dispensável, representa um pacto firmado entre Marisa e o público que se renova a cada cena. Nenhuma história sobre dependência e compulsão é leve ou engraçada e, mesmo o espectador mais escolado, encontra dificuldade de dissociar Marisa da inegável veia de comediante – e aqui, no que seria um problema, reside o trunfo de Bárbara.
Somente Marisa poderia quebrar códigos e bancar situações no limiar da tragédia sem que os acontecimentos gerem piedade ou depressão. E ela quebra e banca! É uma atriz que, segura da memória afetiva da plateia, manipula para o bem a personagem e, graças a essa intimidade, estabelece uma sintonia que permite a entrega emocional de todos.

A jornalista paulistana Barbara Gancia, hoje com 67 anos, construiu uma sólida carreira na Folha de S. Paulo e ganhou popularidade como debatedora do programa Saia Justa, do GNT, entre 2016 e 2019. Nascida em uma família privilegiada, ela, por trás de uma extrema inteligência, nunca teve papas na língua e, durante décadas, conviveu com o alcoolismo – o que potencializava o lado ferino e polêmico dentro e fora do terreno profissional.
Há quase duas décadas limpa, Gancia publicou A Saideira em 2018, um depoimento honesto da sua relação com a bebida. Em momento algum, a autora assume o papel de vítima e constrói o drama com uma autocrítica que dissemina esperança sem escorregar na autoajuda. Gancia retrata a sua experiência, mas não emite juízo de valor ou terceiriza a responsabilidade de seus atos.
Esta característica tão marcante da obra é transposta com fidelidade para o palco tanto no texto de Michelle como na encenação de Guida e foi abraçada por Marisa, que, estreante em monólogos, vive um ponto alto de profícua carreira de quatro décadas.
Não existe espetáculo de uma mulher só, claro. É inegável, porém, que Marisa dita o rumo do barco, com a capacidade de transitar entre o dramático e o cômico sem que o espectador se perturbe com as variações. Todos enxergam a Bárbara da autoficção como uma fusão da intérprete com a jornalista que inspirou uma terceira personagem e tantos outros que podem ter atravessado questões semelhantes. Não à toa o Bárbara da personagem e do título da peça é acentuado, ao contrário da grafia do primeiro nome de Gancia.

Mesmo que Marisa capriche no sotaque paulistano – tão característico de Barbara –, o resto da composição não tem nada de óbvio. Tão forte quanto a fala, a comunicação se completa com o trabalho de corpo, resultado da impecável direção de movimento criada por Fabrício Licursi, que, aliás, divide a cena com a atriz em uma interação que vai da contrarregragem ao papel de anjo da guarda da protagonista.
Por que a Bárbara de Marisa é assim, tão longe de uma mimetização e tão próxima da energia de Barbara Gancia? Porque Marisa é uma atriz que entendeu ao longo da carreira que o teatro, apesar de ser regado pelo sentimento, não pode ser dominado pelo romantismo. Formada pela EAD na metade da década de 1980, a atriz sacou que nenhum intérprete é uma folha em branco, como muitos pregam que deve ser um grande artista.
A Marisa, que, neste momento é Bárbara, já se passou por tantas outras. Brilhou em alguns dramas, muitas comédias e musicais e, ainda por cima, é ótima cantora. Ela, que já foi Magda, Mortícia, Simone de Beauvoir e a enteada de Luigi Pirandello, se mostra consciente de que o público vai ao teatro com um pouco de cada uma destas referências e, calejada, usa todas a favor de Bárbara.

Não existe o trágico sem o cômico, pelo menos para quem está de fora, e, no drama do alcoolismo, é fácil rir de uma situação que gera culpa minutos depois. Assim como nos relatos de Gancia no livro, Marisa não constrói estratégias para a reação da plateia. Não cambaleia ou embarga a voz para salientar exaltação e tais ações são pontuadas pela trilha sonora composta por André Abujamra.
No entanto, todos entendem perfeitamente as intenções ao ouvi-la disparar frases como “Eu bebo porque preciso de um pouco de loucura, porque sou muito sã”, “Eu quero me divertir (…)/ Eu não consigo mais me divertir” ou “Ninguém fica dependente em vagem sem tempero”. São exemplos de sentimentos – tristeza, fragilidade e deboche – alinhados em trechos da dramaturgia de fácil assimilação e nenhuma pretensão de melodrama.
Falando em autoficção, Bruno Guida e Michelle Ferreira são os responsáveis por outro grande acerto recente, A Última Entrevista de Marília Gabriela, que simula um jogo da verdade entre a atriz e apresentadora de TV e o filho caçula, o ator Theodoro Cochrane. Em cartaz há um ano, a peça traz uma exposição quase cruel de uma mãe poderosa e um filho vulnerável. Assim como em Bárbara, Guida e Michelle extrapolam a imagem de Marília Gabriela para trazer à tona supostas confissões que brincam com os conceitos de pós-verdade e do teatro contemporâneo.
Nestes dois casos é evidente a diferença para outras tantas “quebras de quarta parede” ou peças de teor confessional, porque a cena não é disfarçada em momento algum e existe uma teatralidade em curso. Se Gancia caracterizou o seu livro como um depoimento pessoal, a sacada da dramaturgia de Michelle, da encenação de Guida e da performance de Marisa é coletivizar as situações.

Ninguém está lendo um livro deitado no sofá. Todos estão em uma sala de espetáculos compartilhando uma experiência de grupo e essa adaptação de linguagem tira a peça da linha discursiva. Por isso, a quebra da quarta parede assim que Marisa pisa no palco se justifica com clareza. Todos sabem que a mulher que está ali tem um pouco de Magda, Mortícia, Simone de Beauvoir e da enteada de Pirandello. Porém, naquele momento, ela será Bárbara, que não é só Barbara Gancia ou Marisa Orth, mas, quem sabe, a vizinha de poltrona ou mesmo você.
Quase quatro anos depois da estreia do espetáculo, a atriz se mantém rigorosa e fiel à partitura da personagem – algo raro de acontecer, ainda mais quando há brechas para a comédia. Desta forma, sem pesar a mão ou deprimir o espectador, presta um valioso serviço em relação ao assunto, que, embalado como teatro, diverte e serve de alerta a muita gente.
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