Um homem, agora beirando seus sessenta anos, conta que, quando criança, passava longos períodos na casa dos avós – prédio de esquina movimentada, poucos andares, no bairro de Pinheiros em São Paulo. Ele lembra que, certa vez, ouviu da janela do apartamento uma música especialmente linda, contagiante, mágica, vinda de longe, e pediu ao avô que o levasse até a rua para ouvir mais de perto e ver o que estava acontecendo.
Tratava-se de um palhaço tocando piston, repetindo e repetindo sempre aquela mesma melodia que enfeitiçou o menino. O palhaço e sua trupe formavam uma espécie de cortejo e caminhavam pela calçada alegrando as pessoas com o intuito de divulgar os espetáculos da companhia; o instrumento tocado era o meio de chamar a atenção do público.
A criança dessa história, anos depois, ao assistir a um clássico do cinema e ouvir à famosa trilha sonora, surpreendeu-se e gritou, certeiro: “a música do palhaço!”. Era Tema de Lara (Maurice Jarre), da grandiosa produção Doutor Jivago (David Lean, 1965, protagonizado por Omar Sharif e Julie Christie), e, o adulto, meu pai – que sempre me contou a história da música do palhaço, conseguindo transmitir todo o encantamento da época diante daquela experiência lúdica. Ao pensar sobre como deveria iniciar a primeira coluna de 2022, esse episódio me veio à mente.
É muito difícil, na atual conjuntura, traçar um panorama sobre as expectativas do teatro para este ano, diante de tantas incertezas. Como já salientei em textos anteriores, o teatro é a representação viva de uma cultura, de um povo, de uma nação. Portanto, neste começo de ano, o teatro está como o Brasil: incerto, indefinido, meio sem rumo. Como a arte é um dos grandes pilares capazes de trazer esperança às nossas vidas, trabalhar com arte no Brasil é um paradoxo. Mas, também, é o motivo pelo qual devemos continuar, seguir em frente. O Brasil, assim como qualquer país, precisa de sua cultura, da sua arte, para expressar quem somos.
No atual cenário tenho visto amigos artistas, mestres das artes, sem saber o que vai acontecer: “será possível trabalhar neste começo de ano?”, é a pergunta que muitos se fazem. Claro que a incerteza é inerente à profissão do artista – nunca se sabe, sequer, se o público vai rir de uma cena cômica ou, mesmo, se vai ter público… A novidade, agora, é que o setor cultural do país, e não apenas pelas terríveis consequências da pandemia, está em frangalhos.
Nesta semana, recebi diversos e-mails de produções teatrais informando: “estreia cancelada”, “temporada adiada”. Será que o teatro vai paralisar novamente, sendo que há pouco dava sinais de ressurgimento? Decerto que a prioridade é – e sempre foi – controlar o vírus, defender a saúde e a vida, até porque sem profissionais em cena e espectadores saudáveis não há como fazer teatro. Mas tudo isso tem sido devastador para o meio cultural: profissionais desempregados, até mesmo buscando outros meios de vida, e a arte, que se mostrou imprescindível para os tempos de confinamento, sendo novamente relegada.
A vida está em plena transformação neste início de século, estamos sendo obrigados a rever paradigmas, a nossa relação com o planeta e com os outros. E, neste cenário, precisamos repensar, também, a nossa relação com a cultura e as artes de forma geral, pois ela pode, sim – sem demagogia –, salvar muitas pessoas. A arte, apesar de grandiosa, é sutil, responsável, muitas vezes, pelas pequenas alegrias da nossa vida cotidiana; ela é capaz de ensinar empatia e respeito. Por que não aproveitarmos o novo começo de era para, individualmente, reinventar a nossa relação com as artes e a cultura? Quantas peças assisti em 2021? Que livros eu li? Quais filmes influíram na minha maneira de pensar e de ver o mundo? Como pretendo consumir cultura e arte neste novo ano? Mais do que compreender o valor da cultura e da arte, é preciso agir, indo a teatros, museus, cinemas, ler mais, enfim, patrocinar as expressões artísticas para que ela nos devolva a nossa humanidade.
E o palhaço e seu piston? Por trás da maquiagem carregada e do nariz vermelho havia um profissional, um artista resistindo, lutando pela visibilidade do seu trabalho, com a missão de mudar o mundo, como mudou para sempre a vida daquele menino. Por isso, o show tem que continuar. É preciso cultivar a esperança em dias melhores; basta olharmos para além das nossas janelas.
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.