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Foto: Ale Catan
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“Ray – Você Não Me Conhece” é um musical biográfico elevado ao topo pela força criativa do diretor Rodrigo Portella

A vida do cantor Ray Charles ganha o palco sob o ponto de vista de um de seus filhos em um espetáculo emocionante e naturalmente político

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Uma das principais qualidades do filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, é ressaltar o cotidiano de uma família que vivia uma possível felicidade até ser dilacerada por um regime autoritário. Esta mesma humanidade guia o espetáculo Ray – Você Não Me Conhece, produção idealizada por Felipe Heráclito Lima, com texto e direção geral de Rodrigo Portella, em cartaz no Teatro B32, em São Paulo.

O Ray do título é o cantor, compositor e pianista estadunidense Ray Charles (1930-2004). Deficiente visual desde a infância, ele superou inúmeras adversidades, como a pobreza, a cegueira, o racismo e a insegurança, e se tornou um dos mais célebres nomes da música internacional. É o criador de clássicos, como Georgia on My Mind, A Song For You e I Believe to my Soul, e consagrou um estilo que transita entre o soul, o blues e o country. Além disso, abriu caminhos para que artistas cegos, a exemplo de Stevie Wonder e José Feliciano, construíssem uma carreira em uma época em que a inclusão não era pauta.

Foto: Ale Catan

A dramaturgia, construída por Portella, é inspirada no livro homônimo de Ray Charles Junior, um dos doze filhos do artista, e, neste ponto, começa a diferença de Ray – Você Não Me Conhece para outros espetáculos do gênero e justifica a comparação feita com o filme Ainda Estou Aqui.

Se, no longa-metragem, o roteiro é centrado em uma mulher (vivida por Fernanda Torres) obrigada a derrubar a própria casa e construir outra para sustentar os filhos depois que o marido (o ator Selton Mello) é dado como desaparecido, aqui é o olhar do filho, apaixonado, frustrado, ressentido e questionador, que conduz a história.

Ray Charles pode ter conquistado incontáveis glórias profissionais, mas, por causa de um sistema segregador e falsamente democrático como o dos Estados Unidos, jamais esqueceu de que era preto, órfão, pobre (mesmo ficando rico) e cego, respingando as consequências disto em todos os que viviam a sua volta.

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Logo, assim como Ainda Estou Aqui é muitas coisas antes de ser um filme sobre as atrocidades da ditadura militar, Ray – Você Não Me Conhece pode ser definido, primeiramente, como uma história sobre pai e filho vítimas de uma conjuntura para, depois, ser o musical biográfico em torno de um gênio da canção.

Quando o público toma ciência disto – e não demora –, fica fácil se envolver em um enredo de ingredientes irresistíveis, entre eles belas canções, lindos figurinos e ótimos atores/cantores e atrizes/cantoras, e outros necessários, como o preconceito racial, a persistência da mentalidade machista e o lugar de fala de um elenco preto. Ray – Você Não Me Conhece é engajado e naturalmente político sem ser duro, panfletário e autoritário às avessas, nos moldes de Ainda Estou Aqui.

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É claro que Ray Charles não era um único homem, de personalidade fechada, chapada e sem nuances, como Ray Charles Junior também não era, ou melhor, deve ser. Então, na peça de Portella, eles são muitos. Os atores César Mello, Sidney Santiago Kuanza, Abrahão Costa e Luiz Otávio se revezam sem parar nos papéis de pai e filho ao longo do espetáculo em um recurso ousado e bastante perigoso que, graças a um rigor de direção e composição, não confunde o público. Os meninos Caio Santos e Victor Morais fazem Junior na infância. Somente o ator Flávio Bauraqui se restringe a interpretar Ray Charles, quer dizer, o fantasma de Ray Charles, e por aí a história começa a ser contada.

O compositor de Georgia on My Mind morreu em 10 de junho de 2004, aos 73 anos. Para a sua família, devido a sua tamanha ausência constante, era como se tivesse morrido várias vezes e, de repente, reaparecesse. Na chegada do funeral, em Los Angeles, Junior (então interpretado César Mello) fala da emoção de ver as pessoas entoando em coro canções que viu nascer dentro de casa e, mesmo assim, o seu pai, da mesma forma que para os fãs, era um ser inalcançável. “Toda vez que ele partia eu pensava que não voltaria mais”, diz o filho. “Você está morto agora e sinto como se ainda estivesse esperando você voltar.”

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Eis que Ray Charles (representado por Bauraqui) entra na sala e começa a desconstrução de uma encenação que, apesar de calcada em uma biografia, sublinha a cada momento que tudo ali é teatro, nada do que é visto tem um compromisso rígido com a realidade. Não se trata de um mero recurso elucidativo, mas uma reafirmação de que os fatos, contados sob o ponto de vista de Junior, podem não ser tão fiéis, já que serão pontuados por contradições e sentimentos.

A quarta parede é constantemente quebrada – seja para comentários casuais dos personagens ou mesmo para a descrição de cenário, figurino ou algum movimento para os deficientes visuais presentes –, só que nada quebra o fascínio teatral. A cortina de blecaute do fundo do palco chega a ser aberta para a plateia se lembrar de que está na Avenida Faria Lima, em São Paulo, e não nos Estados Unidos.

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Recurso importante para manter esta aura de encantamento é a presença quase em tempo integral de um coro feminino, formado por Luci Salutes, Lu Vieira e Roberta Ribeiro, e de uma banda de sete instrumentistas, dividida em piano, baixo, bateria e sopros, sob a direção musical de Claudia Elizeu e André Muato. O pianista, Luiz Otávio, um dos intérpretes de Ray, é deficiente visual. Poderia não ser desse jeito, mas, nessas sutilezas, a produção de Ray – Você Não Me Conhece demarca comprometimento.

Ray Charles, como provavelmente grande parte dos gênios, ficou longe do pai ideal para uma criança e continuou difícil de ser entendido até para um adulto. Teve doze filhos com nove parceiras diferentes, tendo se casado apenas com Della Beatrice Howard (representada por Letícia Soares), mãe de Junior e fundamental para a compreensão do comportamento do protagonista.

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Mulherengo incorrigível, incapaz de oferecer por muito tempo aos seus amores a sensibilidade dedicada à música, Ray Charles mergulhou fundo nas drogas com a desculpa de que, embalado pela viagem, o seu talento aflorava em proporções incomparáveis àquelas da sobriedade. Tudo se justifica, nada se justifica. Não deve ter sido fácil para alguém que perdeu a visão na infância depois de um trauma ter que ser tão exato a ponto de saber de cor o número de degraus das escadas ou quantos passos o levavam com segurança de um lugar para o outro.

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Letícia Soares, na pele de Della Beatrice Howard, é uma presença deslumbrante e, além do trabalho dramático, oferece solos carregados de técnica e emoção. O espetáculo, entretanto, é dos Rays e dos Juniors, e o principal destaque deste time é César Mello, um ator tarimbado nos musicais, mas que cada vez mais chama a atenção pelos potenciais junto aos textos, dosando densidade teatral e carisma. Também experiente no gênero, o ator Flávio Bauraqui, que deu corpo e voz ao compositor Cartola em duas produções, orbita praticamente o tempo inteiro em cena em uma tarefa difícil, a de dar credibilidade a um fantasma sem soar uma estranheza, e alcança momentos comoventes que não fogem do naturalismo.

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Teatro bom é como feijão com arroz, para quem gosta, claro. Se for de qualidade, tudo plenamente satisfatório, mas o tempero diferenciado separa os fortes dos fracos. Rodrigo Portella pode ser considerado um dos maiores encenadores brasileiros da atualidade. Se não é o principal, é aquele que costuma surpreender a plateia a cada novo trabalho e cada um invariavelmente é diferente do outro, com estéticas individuais e linguagens plurais.

Portella é responsável por Tom na Fazenda, que rompeu fronteiras e faz sucesso internacional, e pela simplicidade contundente de As Crianças, com as atrizes Analu Prestes e Stela Freitas e o ator Mário Borges, além de ter conseguido extrair o melhor de Maitê Proença em O Pior de Mim. Mesmo quando erra, caso de Insetos, da Cia. dos Atores, pode ser por vários motivos, nunca pela acomodação.

Quem vê Ficções, o espetáculo-sensação protagonizado por Vera Holtz, deve ser perguntar como se deu o milagre de transformar em dramaturgia o livro Sapiens, Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari. O santo em questão é Portella, que, claro, apoiado na capacidade comunicativa de Vera, reverteu qualquer possibilidade de adaptação conservadora e hipnotiza o espectador com as imagens traduzidas pela atriz, o som do violoncelista Federico Puppi e uma enorme rocha no palco.

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Ficções foi a primeira parceria de Portella com o produtor Felipe Heráclito Lima, um apaixonado pelos livros, que surpreende por concretizar projetos teatrais em cima de obras dificilmente imagináveis cenicamente. Ray – Você Não Me Conhece, versão do relato biográfico de Ray Charles Junior, poderia ter rendido um bom musical, com uma história interpretada com eficiência – afinal, é mais um ajuste de contas entre pai e filho – e pronta para encher os olhos pelo requinte e emoção.

Só que de histórias bem-intencionadas e levadas com eficiência o teatro está cheio e alguns encenadores sabem ir além disto. No teatro brasileiro atual, Rodrigo Portella é o mais seguro deles para trabalhar com o que tem à disposição (no caso, um sofá, um bom elenco, instrumentos musicais e belos figurinos) e inventar o que for possível em nome de um resultado fora da curva. São humanidades que fazem a diferença.

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Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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