O teatro continua, à revelia de tudo e de todos, das mazelas, das guerras, das políticas públicas, das pautas identitárias, da visibilidade ou invisibilidade, do descaso da imprensa. O teatro sempre continua.
Mas e as atrizes, continuam?
O que viria ser ATRIZ?
Em tempos não tão distantes, lá no Séc. XX, para ser considerada uma atriz era necessário atravessar um deserto de ponta a ponta, carregando nas mãos, um pires com duas gotas de água. Ter lido os clássicos ocidentais da literatura dramática, ter ido ao teatro pelo menos quatro dezenas de vezes, dominar conceitos e linguagens da cena, além de aspectos técnicos do palco italiano, como saber o que é uma bambolina, uma rotunda, um ciclorama, no mínimo! Para começar a ser considerado uma atriz profissional.
Havia na década de 1980, acreditem ou não, grupos de teatro amador. Festivais de teatro amador. Prêmios destinados aos amadores. Pessoas que se juntavam para fazer teatro, sendo responsáveis por tudo, do texto à montagem de cenários. Não, não existia os tão “valorosos” stories, as tão “imprescindíveis” selfies, mas praticantes desenvolviam habilidades e competências para mais tarde se profissionalizarem.
A tentativa aqui, é esclarecer que havia algumas premissas básicas a serem cumpridas. E estou apenas e tão somente me referindo às atrizes de teatro, os outros veículos de atuação… abafa!
“O ator, desempenhando um papel/personagem, situa-se no cerne do acontecimento teatral. Ele é o vínculo vivo entre o texto e o autor, as diretivas de atuação do encenador e o olhar e audição do espectador. Compreende-se que esta importância esmagadora tenha feito dele, na história do teatro, ora uma pessoa adulada e mitificada (…) ora desprezado do qual a sociedade desconfia” (Pavis, Patrice – Dicionário de Teatro, Ed. Perspectiva)
O teatro é uma atividade complexa e o espetáculo teatral é um projeto escrito que objetiva dar a uma obra literária, na transposição da linguagem, da literatura para a cênica, uma expressão viva. E o ator é ação pura, cabe a ele dar corpo, voz e emoção às palavras escritas, evidenciando a narrativa dramática a ser apresentada ao público. Se é assim, o ator deve desenvolver muitas habilidades com seu corpo, sua voz, potencializando sua presença em cena. Então, como acreditar que muitos atores não exercitem seu “material” de trabalho? E acreditem ou não, alguns não o fazem.
À revelia do que não é feito, quero focar no que É feito. Existe uma quantidade muito grande de atores e atrizes que estudam com afinco, se empenham e levam seu trabalho muito, muito a sério. Enfim… nem tudo está perdido!
Vamos a um recorte fundamental, para continuidade deste meu raciocínio. Atrizes negras. Atrizes negras no teatro. Atrizes negras no teatro da cidade de São Paulo. Temáticas? Episódicas? Pauta?
Não é novidade para os leitores que vivemos em uma sociedade racista. São vastas as comprovações dessa minha afirmação, que por hora, não cabe aqui serem expostas, mas tomem essa afirmação como verdadeira, sei do que estou falando. Sou atriz, negra, com 37 anos de trabalho ininterrupto no teatro de São Paulo. Antes, em 1990 (por exemplo) eu era feia e só “podia” fazer a empregada boazinha, agora já sou mais ou menos bonita e já posso fazer uma dona de loja e até uma advogada!!! Estou me perdendo, falando em primeira pessoa, ah… a vaidade!
De volta ao começo, sabemos que o teatro ocidental “nasceu” na Grécia, mas na África tinha teatro, na Ásia tinha teatro, ok, somos ocidentais e os colonizadores europeus idem… sem mais polêmicas!
O que é preciso dizer é que no teatro grego, as mulheres não ocupavam a cena, eram só atores, só dramaturgos, só filósofos, depois só críticos, só diretores, só produtores só… só… homens! Não é fácil ser MULHER, imagina ser MULHER PRETA? MULHER PRETA ATRIZ? Cinco desertos, meio pires, nenhuma gota de água (não entendeu? volta ao início do texto, ou fica essa rodada sem jogar, sorry)
Darwin, até que tinha razão. Só as mais aptas sobrevivem, seleção da espécie! Poderia dizer que a atriz negra tem que ser apta a superar as dificuldades, a falta de dinheiro, o racismo, os estereótipos, mas … ela tem que ser apta para se manter sã, trabalhar e estudar três vezes mais que todas, amealhar aliados e se fazer de desentendida, pra acharem que ela não sabe, porque sempre oferecem o pior cachê pra fazer a mesma coisa, que as outras não negras fazem!
Por fim, concordo (e quem sou eu para não concordar) com a genial escritora estadunidense Alice Walker, que disse: “as mulheres negras podem fazer quase tudo – porque geralmente elas já fizeram”. Fizeram, fazem e continuam fazendo, ou eu não estaria aqui, escrevendo… no início era o verbo, né?
valeu Infoteatro !
Sigamos. Axé.
Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.