Em uma nota, o jornal O Estado de S. Paulo de 16 de outubro de 1970 informou que, finalmente, o espetáculo Os Rapazes da Banda, de Mart Crowley (1935-2020) subiria ao palco do Teatro Cacilda Becker, em São Paulo. A estreia, prometida para três dias antes, precisou ser adiada porque não havia sido avaliada por um censor – protocolo comum em tempos de ditadura militar.
A peça, produzida pelo casal John Herbert e Eva Wilma, contava com os atores Walmor Chagas, Paulo César Pereio, Benedito Corsi, Benê Silva, Otávio Augusto, Paulo Adário, Roberto Maia e o próprio Herbert, dirigidos por Maurice Vaneau. Lima Duarte, Raul Cortez e Tony Ramos substituíram colegas deste time em futuras temporadas.
Lançada na Broadway dois anos antes, a primeira montagem brasileira de The Boys in the Band foi sucesso imediato e, no ano seguinte, em 21 de abril, chegou ao Rio de Janeiro, no Teatro Maison de France. Ficou em cartaz por um mês vítima da proibição da censura local e, só seria liberada, em junho, quando ocupou o Teatro da Lagoa por quatro meses de intensa repercussão, voltando a São Paulo, em novembro, desta vez no Teatro Oficina.
The Boys in the Band representou revolução na época, um momento em que o mundo lutava por liberdade social, política e comportamental. Pela primeira vez, uma obra teatral discutia abertamente a temática homossexual, colocando em cena os conflitos íntimos de um grupo de amigos que se desmascara no decorrer da trama. O espectador, até então acostumado a ver personagens gays retratados como caricaturas e, muitas vezes, pilares cômicos das histórias, também tinha sua tolerância testada.
Mais de cinco décadas depois, a comunidade LGBTQIAPN+ conta com inúmeros avanços, mesmo que precise sempre ficar atenta para a preservação dos direitos. A verdade é que o mundo mudou, mas não tanto assim. Sob a direção de Ricardo Grasson, The Boys in the Band – Os Garotos da Banda voltou aos palcos brasileiros em temporada no Teatro Procópio Ferreira, na mesma São Paulo que ouviu o texto pela primeira vez. Os nove personagens são interpretados por Bruno Narchi, Caio Evangelista, Caio Paduan, Heber Gutierrez, Júlio Oliveira, Leonardo Miggiorin, Mateus Ribeiro, Otávio Martins e Tiago Barbosa em uma produção que desafia o tempo e se esforça para mostrar que aquele ano de 1968 realmente não terminou.
É dia de festa! Michael (Mateus Ribeiro) abre o seu apartamento para comemorar o aniversário de Harold (Bruno Narchi). Toda turma vai levar presentes, beber e um cowboy (Júlio de Oliveira) foi contratado para animar a rapaziada. Horas antes, porém, Alan (Caio Paduan), que vive no interior e está de passagem por Nova York, telefonou para Michael. Quer reencontrar aquele que foi seu melhor amigo de faculdade e há muito não vê. No meio da ligação, chora, pede um ombro para desabafar. Michael comenta a situação com Donald (Leonardo Miggiorin), sujeito tenso, pouco resolvido com sua identidade, mas hoje é dia de festa. Alan que espere para um almoço amanhã.
A garotada começa a chegar e o barulho aumenta. Hank (Otávio Martins) e Larry (Caio Evangelista) formam o casal modelo da turma. Emory (Heber Gutierrez) logo pinta por lá e Bernard (Tiago Barbosa), cheio de alegria, começa a murchar o sorriso ao ter que fingir graça das piadas racistas dos colegas. Harold (Bruno Narchi), o aniversariante, atrasado como sempre, finalmente invade a sala. Música, dança, taças cheias e lá vem o som da campainha. É Alan, de smoking, depressão estampada na cara, que entra surpreendendo Michael. O anfitrião tenta reprimir a espontaneidade dos convidados e fazer um teatrinho para que o velho amigo não perceba a sua orientação sexual.
Alan só quer um pouco de acolhimento e quem lhe dá atenção é Hank, que já foi casado com uma mulher, é pai e, depois de anos reprimido, se separou por amor a Larry, que, logo, não disfarça o ciúme. Alan, desnorteado, se revela homofóbico e dispara comentários ofensivos. Michael não sabe o que fazer, a maioria da turma não está nem aí e, isolado, Alan vai afundando aos poucos. O anfitrião assume o posto de dono da verdade e se defende com uma arrogância que todos os amigos conheciam, mas fingiam que não afetava ninguém. O que era para ser um dia de festa vira a exposição de conflitos de seres solitários que não sabem lidar com os sentimentos e as diferenças de cada um.
The Boys in the Band – Os Garotos da Banda é uma peça triste, mas, em meio a algumas de suas qualidades, faltou assumir essa tristeza para o público de 2023. Em um momento emblemático, Michael dispara uma frase para Alan capaz de sintetizar muito da melancolia que permeia os personagens diante da figura daquele invasor: “Nós somos como um acidente na beira da estrada. Você não consegue olhar, mas não para de olhar”.
Deixar tão evidenciada a ambientação da trama em 1968 enfraquece o resultado. Existem duas questões transformadoras nos 55 anos que separaram a publicação do texto e o espetáculo em cartaz no Teatro Procópio Ferreira: a avassaladora epidemia da aids na década de 1980 e o crescente orgulho LGBTQIAPN+, que faz as novas gerações lidarem com a orientação sexual com menos culpa e repressão. Diante destes dois pontos, o texto de Mart Crowley envelheceu, e o diretor Ricardo Grasson confiou demais na sua modernidade. Perdeu oportunidade de travar um diálogo contemporâneo com o público a ponto de envolvê-lo diretamente com os conflitos dos personagens.
Em 2023, a possível bissexualidade de Alan renderia discussões relevantes, assim como a tensão entre Harry e Larry, que insiste em abrir a relação mesmo contra a vontade do companheiro. A incapacidade de Michael de amar ou de, pelo menos, se deixar ser querido pelos amigos é pouco explorada e o racismo em torno de Bernard ofereceria uma pauta aprofundada que valorizaria o espetáculo. Estes quatro pontos do texto, embalados com maior densidade, colocariam The Boys in the Band – Os Garotos da Banda em um outro patamar de interesse.
Encontrar unidade em grandes elencos é sempre uma imensa dificuldade para qualquer direção e, neste ponto, Grasson lida com uma grande fragilidade na irregularidade dos atores. Em cena, ótimos desempenhos são facilmente percebidos, da mesma forma que composições vulneráveis evidenciam a necessidade de um exercício maior e correções ao longo da temporada – vale ressaltar que este que vos escreve assistiu ao espetáculo na noite de estreia.
Talento dos musicais, Mateus Ribeiro é o destaque como o anfitrião Michael e suas ambiguidades. O ator consegue murchar e ressurgir de acordo com as hesitações do personagem apoiado em uma caracterização que poderia lhe pesar, mas lhe oferece novos suportes. Caio Paduan constrói um Alan notável em meio aos seus dilemas e, principalmente, na segunda metade do espetáculo, se sobressai por demostrar a melancolia através dos longos silêncios.
Nome mais experiente do time, Otávio Martins é o tipo de ator que deixa marcas em qualquer personagem. Aqui, ele transmite a Hank uma naturalidade cativante ao público e domina a ação em pelo menos dois momentos, a aproximação fraternal com Alan no começo da peça e a intensa discussão de relação com Larry, que, mesmo interpretado por um Caio Evangelista pouco seguro, encontra eco na emotividade da plateia.
Leonardo Miggiorin é vítima do personagem Donald. O ator começa o espetáculo com grande vigor nos diálogos com Michael e, mesmo presente no palco o tempo inteiro, praticamente fica invisibilizado no decorrer da montagem até ressurgir no final. Apoiado no exagero, Bruno Narchi, por vezes, escorrega em um personagem difícil de refletir na plateia justamente por Harold ser desde o começo o superficial do grupo. O mesmo tom persegue Heber Gutierrez com o seu Emory, que acaba limítrofe entre o divertido e o excessivamente estereotipado. Também estigmatizados, o Bernard de Tiago Barbosa e o Cowboy de Júlio Oliveira são marcados por contrastes, o primeiro com um tom acima em vários momentos e o segundo, monocórdico.
No programa de The Boys in the Band – Os Garotos da Banda, o diretor Ricardo Grasson escreveu “nossa produção é uma homenagem ao passado, um reflexo do presente e uma inspiração para o futuro”. Da forma como se apresentou na estreia, The Boys in the Band – Os Garotos da Banda, sem dúvida, celebra o passado, mas ousa muito pouco nesta reflexão do presente e o público de hoje não parece interessado em saudosismo. Muitos temas urgentes estão ali esboçados e precisavam ser abordados com cautela no passado, mas, hoje, poderiam ser encarados de forma mais profunda e até cumpririam uma real função política.
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