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Foto: Caio Lirio
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“Torto Arado – O Musical” persegue uma fidelidade ao original que se torna obstáculo para a teatralidade

Dirigida por Elísio Lopes Jr., a adaptação do romance de Itamar Vieira Junior pode até encantar o público que espera encontrar o livro no palco, mas isto é pouco

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

É inegável a importância de Torto Arado, o aclamado romance de Itamar Vieira Junior, para a literatura brasileira neste primeiro quarto de século. Só pelo feito raríssimo de vender 1 milhão de exemplares, a obra simboliza o quanto era necessário e urgente um olhar dos escritores e leitores para as profundezas de um país que se recusa a se enxergar. Com isso, abriu espaço para outros autores tratarem de temas sufocados e encontrarem chances de publicação e comercialização. Mas a relevância não para por aí.

Lançado em 2019, Torto Arado se tornou um daqueles romances que gera encantamento progressivo em diferentes bolhas. Trouxe de volta uma sensação comum em décadas passadas, principalmente entre a classe média, a de que quem não leu o tal livro andava por fora – ainda mais durante a pandemia, quando diversas postagens nas redes sociais o jogavam nas alturas. Tudo graças a uma história épica e cheia de poesia, ambientada no sertão baiano, narrada com maestria por Vieira Junior e conectada a um discurso amplificado nos últimos anos.

O foco recai sobre duas irmãs, Bibiana e Belonísia, que crescem confrontadas pela vida e pela morte, pelo amor familiar e pela exploração daqueles que se julgam os verdadeiros donos da terra. Em meio a tantas dualidades, conhecidas da maioria do povo brasileiro, elas enfrentam obstáculos e tiram força sabe Deus de onde para seguirem em frente. Nada mais natural que a imensa repercussão gerasse interesse de artistas e produtores para que a trama fosse contada através de outras visões que ultrapassassem a literatura. Só que, diante de tudo isso, os desafios se apresentam quase impossíveis de serem superados.

Foto: Caio Lirio

No teatro, a encenadora brasileira radicada na França Christiane Jatahy estreou Depois do Silêncio em Viena, na Áustria, em junho de 2022. A montagem, inédita por aqui, foi inspirada nas questões levantadas por Vieira Junior para tratar de racismo e da necessidade de acreditar em mudanças. Com a sua linguagem própria, que funde teatro e audiovisual, Jatahy deve surpreender e até espantar os fãs mais conservadores de Torto Arado. Pelo que se conhece de sua obra, fica fácil prever que a artista oferece uma abordagem pouco convencional e de comunicação mais cerebral e menos massificada – o que gera a frustração de quem busca encontrar Bibiana e Belonísia próximas do que são mostradas no livro.

Percorrendo uma estrada contrária e sem sobressaltos, Torto Arado – O Musical, espetáculo em cartaz no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis, em São Paulo, é tudo o que se espera ver e ouvir da adaptação de um livro que já pertence aos clássicos. A montagem, que estreou com grande alvoroço em Salvador no mês de setembro, chegou até a capital paulista avalizada por mais de 14 000 espectadores só na Bahia, e os ingressos no Sesc se esgotaram rapidamente, abrindo margem para sessões extras.

A dramaturgia criada por Elísio Lopes Jr., Aldri Anunciação e Fábio Espírito Santo persegue uma fidelidade ao original difícil de ser alcançada que se torna um obstáculo à encenação assinada pelo mesmo Lopes Jr., diretor-geral do projeto. Existe uma evidente preocupação em não desapontar os admiradores do best-seller e, com isso, os encantos da montagem parecem um tanto limitados diante de uma inspiração tão arrebatadora.

Foto: Caio Lirio

Não há nada de errado ou desabonador em Torto Arado – O Musical se o espetáculo for visto debaixo desta intenção. Sob um olhar atento, porém, as comparações podem ser feitas – o que parece inevitável diante da premissa da adaptação – e uma certa decepção aflora quanto à falta de ousadia. Algo sob a perspectiva contrária se deu com a versão teatral de O Avesso da Pele, outro brilhante romance recente, escrito por Jeferson Tenório. A encenação do Coletivo Ocutá, comandada por Beatriz Barros, fechou um recorte que decepcionou quem esperavam encontrar uma leitura mais próxima ao livro.

Em Torto Arado, as meninas Bibiana e Belonísia (interpretadas, respectivamente, por Larissa Luz e Barbara Sut) vasculham uma antiga mala da avó, a parteira Donana (papel de Lilian Valeska). Crianças e levadas pelo fascínio da lâmina de uma faca encontrada, as duas sofrem um acidente que transforma para sempre a existência delas. Belonísia corta a língua e perde a fala, enquanto Bibiana, recuperada do trauma, se compromete a ser uma espécie de voz da irmã pela vida afora.

As irmãs crescem na Fazenda Água Negra, próxima da Chapada Diamantina, em condições precárias, expostas à exploração e quase escravas. O que resta é acreditar em algo mágico, um encantamento sem explicação capaz de ajudar a sobreviver. O que parece natural para seus pais, Zeca Chapéu Grande e Salustiana (representado por Diogo Lopes Filho e Denise Correia, respectivamente), começa a ser questionado por Bibiana, que, casada com o primo Severo (vivido por Guigga), conhece o mundo além das cercas da propriedade. Como se estivesse enterrada, Belonísia, por sua vez, sente aumentar a opressão ao se casar com Tobias (o ator Anderson Danttas) e se vê limitada à própria mudez.

Os elementos fantásticos da narrativa, como era de se esperar, surtem impacto no palco. A iluminação, criada por Luciano Reis, chama a atenção com suas cores fortes e o cenário, construído por Renata Mota, se torna um exemplo de simplicidade perfeitamente conectada às necessidades dramatúrgicas. A personagem Donana ganha corpo e voz para pontuar a ação como uma referência das forças míticas religiosas. Já na abertura, a presença de Lilian Valeska resulta em uma poderosa imagem e coloca a curandeira como simbologia de uma entidade em meio aos demais personagens.

Foto: Caio Lirio

Mas o que mais norteia Torto Arado no palco são as canções compostas pelo diretor musical Jarbas Bittencourt, estas sim a grande novidade e o que serve de apelo maior ao público. São cerca de quinze e algumas delas possuem autonomia para funcionar em um caminho que vá além do texto dramático – algo que não é tão fácil de acontecer no teatro e se torna um dos principais méritos da produção. As letras servem de complemento narrativo e valorizam o discurso dos personagens, como deve ser no gênero, embora muitas vezes se esqueça, e os seis músicos, acomodados em duas estruturas cenográficas em cada extremidade do palco, são o suporte necessário para que interpretações emotivas contagiem a plateia.

O que frustra em Torto Arado – O Musical é que, em momento algum, o espectador que leu o livro se descola da referência para se deixar levar pela encenação. Ok, esta pode ser a visão de um leitor, mas, em se tratando de uma obra que ultrapassou o milhão de exemplares vendidos, deve ser uma sensação recorrente na plateia.

Mesmo em relação às protagonistas, a comparação salta de forma inevitável. Logo depois do acidente da infância, Larissa Luz, na pele de Bibiana, diz para a irmã “eu posso ser sua boca para falar, pode deixar que falo por você”, e a intérprete parece seguir isto à risca. Explorando sua técnica como cantora, Larissa corresponde às expectativas em torno do reconhecido potencial, mas a imposição de sua figura parece constantemente pensada para se sobressair à de Barbara Sut como protagonista.

O caminho adotado pela direção de Lopes Jr. compromete para que a simbiose psicológica de Bibiana e Belonísia, fundamental para a compreensão da trama, se manifeste no palco. Na encenação, as duas irmãs são naturalmente figuras independentes, enquanto, diante do livro, o leitor estabelece um pacto velado com Vieira Junior para não dissociar uma da outra e pensá-las como siamesas. Em meio a tantas propostas de encantamento, esta é uma das falhas da montagem e pode ser associada a uma opção da direção – a de ressaltar mais a figura de Larissa em detrimento da de Barbara. Para que tal escolha funcionasse com plenitude, a dramaturgia deveria assumir o privilégio do foco em Bibiana e, quem sabe, contar a história sob o seu ponto de vista, como é a primeira parte do romance.

Foto: Caio Lirio

Mesmo assim, o desempenho de Barbara Sut é o que mais impressiona no elenco formado por catorze atores e atrizes. O silêncio da personagem ativa trunfos para a artista usar o corpo como o principal aliado e, de acordo com a postura e os movimentos de Barbara, Belonísia enche o palco com seu vigor ou disfarça a sua presença física, como nos momentos em que é vítima dos abusos de Tobias, ressaltando a dramaticidade pelo olhar. Por isso, é capaz de gerar uma reação quase infantil na plateia ao soltar a voz nos números musicais. É como se todos pensassem: “Nossa, essa atriz fala?!”

São momentos assim que faltam a Torto Arado – O Musical, o de se guiar pela teatralidade e fazer do público refém dos tantos gatilhos emocionais da encenação de uma história, que é, no seu conjunto, triste e pesada. Talvez seja pela falta desta intensidade que os espectadores deixem o teatro tão empolgados no fim da apresentação, como se estivessem saindo de um show. Claro que há o reconhecimento com a representatividade tão pouco valorizada no teatro brasileiro ao longo dos tempos, mas Torto Arado – O Musical carece de uma potência que induza à reflexão e, mesmo deixando o público extasiado, faça com que todos se sintam diante de uma obra de arte tão poética e árida quanto aquela oferecida em livro por Itamar Vieira Junior.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO

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Sobre
Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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