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Foto: Ashlley Melo
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Tuca Andrada investiga a lucidez de Torquato Neto em “Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo”

O ator apresenta solo em que a biografia e a obra do poeta piauiense, morto em 1972, são costuradas ao contexto brasileiro

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Como parte de sua geração, o poeta Torquato Neto (1944-1972) buscou expandir horizontes com todas as drogas possíveis da sua época. Para ele, o veneno, no entanto, era assumidamente o álcool – foram quatro internações voluntárias e a consciência de que vício representava um entrave. Quem conta essa história, no solo Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo, é o seu protagonista, Tuca Andrada, que desmonta a fama de doidão colada ao artista. Um dia, o ator encontrou um livro, Torquatália, antologia em dois volumes organizada por Paulo Roberto Pires, e, conforme se aprofundava na leitura, ficava mais perplexo com o grau de lucidez de Torquato ao enxergar a vida.

A maioria destes escritos vem da década de 1960 e o começo dos anos de 1970 – época de imensa turbulência, principalmente por causa do terror de um regime militar logo implantado, capaz de minar a saúde mental e as perspectivas de muita gente. Tamanha percepção do buraco fez com que Torquato dissesse “pra mim, chega” em 10 de novembro de 1972, na madrugada seguinte ao dia em que completou 28 anos, cometendo suicídio. A sua obra, extremamente profícua diante de uma biografia tão curta, é muito vinculada, com enorme justiça, às parcerias com o time tropicalista, graças a canções musicadas ou gravadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Torquato, porém, sentado na máquina de escrever, na função de escritor e jornalista, perpetuou a relevante visão de um tempo em que preconceitos castravam ideias e mentiras eram encaradas como verdades – algo que o conserva atual.

Tuca Andrada intensificou o mergulho na criação de Torquato durante o isolamento pandêmico, no seu Recife natal, sentindo a morte rondando os seus e indignado com o descaso, para dizer o mínimo, das autoridades. Decidiu fazer algo sobre o poeta, só não sabia o quê e nem por onde começar. A revolta virou arte, e a arte transcendeu o inconformismo para se transformar em poesia e jogo. “Vai, bicho, desafinar o coro dos contentes”, como provocou Torquato no texto, musicado por Jards Macalé, que intitula a peça. Foi na capital pernambucana que Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo estreou em março e, agora, até 10 de maio, pode ser visto no Espaço Cênico do Sesc Pompeia, em São Paulo, em montagem dirigida pelo próprio Tuca e Maria Paula Costa Rêgo.

O clima intimista da sala, para cerca de cinquenta espectadores, contribui bastante para a proposta do protagonista, que, acompanhado dos músicos Caio Cezar Sitonio e Pierre Leite, investe na visceralidade – é possível perceber de perto o suor ensopando o artista ao longo da montagem – e explora um trabalho corporal que ajuda a sustentar a teatralidade. O corpo é o grande elemento de apoio do ator ao contar a história. Sim, porque o público parece cansado das peças em formato de palestras que tomaram conta da cena brasileira. A maioria delas resulta em quase nada e se limita a colocar um artista para narrar uma história em que muito se ouve e pouco se enxerga. Não custa lembrar que umas das premissas do teatro é levar o espectador a ver algo que está explícito no palco.

Camiseta branca e calça idem, Tuca explora todos os estágios de interpretação comuns a esse tipo de solo – só que não prioriza nenhum deles e propõe um jogo constante para se desafiar como artista, não à toa é idealizador, dramaturgo e codiretor. Como não poderia deixar de ser, o ator assume a própria voz ao justificar as inspirações em torno do projeto e oferece a experiência pessoal em passagens do texto, como no momento em que recupera memórias da infância em que via livros sendo queimados nos fundos de sua casa.

Foto: Ashlley Melo

A indefectível figura do narrador também se faz presente e, assim, Tuca situa a história e o contexto da época em um cara a cara com o espectador – afinal, ninguém ali tem a obrigação de ter pesquisado antes sobre o poeta. Fala do começo da vida no Piauí, da chegada à Bahia em um momento de grande efervescência cultural, da mudança para o Rio de Janeiro e o estouro do golpe militar de 1964.

Os recursos de intérprete são mais explorados quando Tuca se converte em Torquato ou recorre a diferentes entonações de voz e postura para ampliar a dramaturgia e mostrar um ou outro personagem pontual. Nestas horas, salta a intimidade do poeta e suas aflições, a paixão por Ana, que seria a mãe de seu único filho, Thiago, as primeiras oportunidades nas redações jornalísticas e o embate com uma mente que, constantemente, teimava em sabotá-lo. Sutilezas cênicas como colocar a cabeça entre as pernas de um pequeno banco ao tratar da privação de liberdade representam uma disponibilidade do artista para se desafiar sem contar com recursos convencionais.

Como já sabido, Tuca é um cantor, brilhou em musicais como O Beijo da Mulher Aranha e O Rei e Eu e foi o próprio dono da voz em Orlando Silva – O Cantor das Multidões. Desta vez, ele coloca o público em contato com letras conhecidas de Torquato que alguns podem nem saber que são da lavra do autor. Atenta a essa contradição das canções celebradas por uns e desconhecidas por outros, a direção musical de Caio Cezar Sitonio desponta como um diferencial capaz de criar conexões e surpreender a plateia. Assim, Mamãe, Coragem aparece como um blues, Minha Senhora segue a linha do samba e Pra Dizer Adeus fica entre o foxtrote e o jazz. Louvação, Geleia Geral, Destino e Marginália II, entre outras, também figuram no roteiro que faz Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo um espetáculo dinâmico e até leve, mesmo que, em muitas partes, trate de temas bastante pesados.

Tuca e Maria Paula Costa Rêgo, como diretores, preferiram investir na fórmula de um documentário cênico. Mesmo que, em grande parte da montagem, prevaleça a voz de Torquato – algumas vezes, apresentadas em áudios de entrevistas –, o espetáculo é marcado por uma polifonia narrativa porque as falas do poeta são encaradas como um desabafo geracional. Cada um pode decifrar Torquato como mais lhe interessar, da mesma maneira que Tuca o entendeu ao seu modo e oferece as ferramentas ao seu alcance. Doidão, mártir de um tempo, esquizofrênico ou gênio irresponsável, não interessa, o que importa é falar de Torquato.

Foto: Ashlley Melo

Let´s Play That ou Vamos Brincar Daquilo chega aos palcos da cidade em um momento em que figuras célebres e transgressoras são revisitadas em outras montagens. Um destes casos é Glauce, monólogo interpretado por Débora Duboc com base na biografia da atriz Glauce Rocha (1930-1971), que também morreu precocemente agoniada por muitas razões, entre elas a truculência dos militares. Outro exemplo, Chego Até a Janela e Não Vejo o Mundo, dramaturgia de Gabriela Mellão e João Wady Cury, trada da amizade do escritor Graciliano Ramos e da psiquiatra Nise da Silveira (representados, respectivamente, por Erom Cordeiro e Simone Iliescu), iniciada na prisão do Estado Novo de Getúlio Vargas.

São personalidades que ajudam a contar a história do país e não podem ser apagadas porque, só com estas cicatrizes bem compreendidas, a mente se abrirá para o entendimento de questões urgentes e debatidas com mais empenho na atualidade. Uma passagem do espetáculo ilustra bem o perigo que, de tempos em tempos, volta a rondar a sociedade. Bem no começo dos anos de 1970, Torquato se sentia incomodado quando era alvo de chacota nas ruas por causa de seu cabelo grande e volumoso. Ele tentava entender por que o visual incomodava tanto algumas pessoas que o taxavam de louco, quando, na verdade, mais louco, em sua opinião, é quem perdia tempo em se preocupar com algo que não lhe dizia respeito. “Loucos, doidos, malucos? Não. Eles são perigosos!”, concluiu o poeta.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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