Você está na cidade de:

Um festival para chamar de nosso

Coluna Por Gabriel Fontoura

A empreitada de um festival de teatro com este porte no Rio de Janeiro foi tão inusitada que nem o Google estava pronto. Quando comecei minha pesquisa para este artigo, só esbarrava em informações sobre o festival de cinema — que ocorreu concomitante e ironicamente na esquina de seu colega teatral. Precisei refinar a busca, esperando que o acesso à informação para o público geral tenha sido mais fácil do que foi para mim. Em contrapartida, não há o que se falar da divulgação física: pontos de ônibus, bancas de jornal e MUPIs rotativos por toda a cidade estampavam os vários artistas da programação, em sua maioria rostos “globais”, familiares a todo brasileiro — ou, melhor dizendo, a todo carioca.

A estratégia era clara: dos doze espetáculos no palco principal, nove contavam com estrelas da Rede Globo no elenco. Não que seja demérito ver Renata Sorrah, Othon Bastos ou Vera Holtz em cena; o talento é indiscutível, muitas vezes até minado pela rotina fordista de um set de gravação. A questão é o status social que esse set impôs aos seus nomes e como isso se tornou a principal ferramenta de venda do evento. A realizadora, Instituto Evoé, que não é boba nem nada, agiu da forma mais empreendedora possível para vender o festival à base dos nomes em sua programação. Mas é uma observação, não uma acusação. Seria errado? Longe disso.

Maria Siman, curadora e diretora de produção do festival, explicou a lógica por trás dessa vitrine e a linha de pensamento que levou à seleção. “Eu brinquei inicialmente que ia ser um festival de grandes sucessos”, contou. O objetivo era levar ao palco do Teatro Riachuelo, com seus mil lugares, produções que já haviam “impactado a cena pela sua inventividade, seu conteúdo” e, crucialmente, “que trouxeram multidões aos teatros”. A fama do elenco, admite, é uma consequência dessa busca por grande público. “Em geral, esses espetáculos com pessoas famosas levam muito público”, afirma, mas ressalta que o filtro curatorial barrou produções que, mesmo populares, não ornavam com a proposta.

A combinação da curadoria artística com a comercial rendeu frutos muito doces: antes do festival sequer começar, boa parte das peças já estava muito bem vendida. Mas o que ninguém esperava, no entanto, era que a maior surpresa do festival viria justamente dos espetáculos que corriam por fora dessa lógica. Como a própria curadora confirmou em nossa conversa, o primeiro espetáculo a ter seus ingressos completamente esgotados — incluindo os lugares reservados para PCDs — da plataforma de vendas não foi o de uma estrela do horário nobre, mas sim “Macacos”, uma peça com a temática antirracista.

Aqui, a tese curatorial sobre “grandes sucessos” se confirma, mas por um caminho distinto. “Macacos” e o fenômeno “King Kong Fran” não chegaram ao festival com o peso de nomes televisivos. São, para usar uma analogia a seus títulos, dois animais raros: espetáculos que se valem de sua própria trajetória, construída sobre os ombros de suas estrelas — Clayton Nascimento e Rafaela Azevedo —, que se tornaram estrelas por causa destes trabalhos. O sucesso de “Macacos” e “King Kong Fran” prova que, mesmo em um projeto edificado sobre a irônica popularidade teatral capitalizada pela televisão, no fim das contas, ainda é sobre a identificação do público com a mensagem mais do que com o mensageiro.

Quando questionado sobre esse processo, Clayton Nascimento, que narrou em uma das ações formativas do Palco 360° sobre o desdém recebido de colegas e professores sobre o material que viria a ser hoje esse estrondoso sucesso, sua resposta foi uma mistura de humildade e a mais pura perseverança. “Parafraseando a Fernanda Torres, eu me sinto o Pikachu”, ele brinca, e completa: “A mim, me cabe dormir bem, comer bem, beber água, acordar e fazer minha peça. Porque é o público que está respondendo a esse desejo”. Quando perguntado sobre a trajetória  de salas vazias a casas cheias no festival, ele ressalta que adora quando é assim porque “a gente vê que os caminhos não são retilíneos”.

Essa mesma sensação de um caminho construído na base da cumplicidade com a plateia é compartilhada por Rafaela Azevedo. Ela descreve o crescimento de “King Kong Fran” como uma convocação nascida da urgência. “Eu sinto que quando eu convoquei para ‘King Kong Fran’, fui ganhando o público […] esse boca a boca que foi crescendo”, explica. “É um pouco do público, né? Que você sente na sua dramaturgia, quando o público está ali junto com você e vocês começam quase a se espelhar. Eu preciso me comunicar com essas pessoas, porque eu não tenho nada além disso. Então é uma escuta muito sincera que vai fazendo crescer.”.

Contudo, as surpresas da programação não estavam reservadas apenas a estes espetáculos: o restante do evento mostrou que a equação “ator famoso + peça de sucesso” estava longe de ser uma ciência exata. “Ficções”, estrelado pela gigante Vera Holtz, amargou a maior vacância do festival, sendo a única produção que, até o fechamento deste artigo, ainda dispunha de ingressos populares. Talvez uma terça-feira tenha sido um dia ingrato na programação, mas o fato contrasta brutalmente com “O Céu da Língua”, de Gregório Duvivier, que se tornou o campeão de vendas, esgotando quase todas as suas oito sessões — e ainda ganhando mais uma sessão —, mesmo com apresentações em uma segunda-feira.

Talvez o verdadeiro teste para o sucesso do festival veio de um imprevisto: um acidente no palco durante uma apresentação de Claudia Raia forçou o cancelamento de “Cenas da Menopausa”, que teria sua estreia carioca no evento. Para cobrir a ausência da peça de Claudia Raia, foram incluídas mais duas datas de “Macacos” e uma de “Simplesmente Eu, Clarice Lispector”, com Beth Goulart, que não estava incluso na programação original. No entanto, a rápida movimentação da produção foi uma faca de dois gumes: enquanto eles não deixaram um buraco na grade do evento, a falta de divulgação para datas tão iminentes refletiu na baixíssima vendagem da peça de Beth Goulart, enquanto as novas datas da peça de Clayton Nascimento – apesar de boa procura – estavam longe de esgotar como sua data original. Afinal, o sucesso da bilheteria não é um raio que cai duas vezes no mesmo lugar. Ele depende de previsibilidade e investimento.

Longe dos holofotes do palco principal, o festival ocupou o Teatro Adolpho Bloch com o projeto Palco 360°, uma vertente de ações formativas, painéis e debates, com acesso gratuito. Ali, a agenda focou no processo criativo e no mercado teatral. Um painel discutiu a construção do sucesso de longa data, outro focou no futuro da cena em um papo com produtores e artistas, e a resistência das companhias de teatro. Um curso de imersão na obra de Nelson Rodrigues completou a programação.

Nas palavras de Aniela Jordan, diretora artística da Aventura, a iniciativa reafirma o “compromisso do evento com o debate” e a “formação de plateia para as próximas gerações”. Foi um reconhecimento importante de que um festival não se sustenta apenas com bilheteria: enquanto um palco capitalizava sobre o sucesso comercial consolidado, o outro se dedicava a discutir a origem desse sucesso e a fomentar as bases para o futuro do teatro.

Comercialmente bem sucedido, o I Festival de Teatro do Rio de Janeiro parece ter funcionado, mas nem tudo é sobre dinheiro. Se os moldes do festival se mantiverem, ser convidado para integrar a programação do Festival de Teatro do Rio de Janeiro se tornará um indicativo do sucesso profissional de um artista teatral. Mas é muito cedo para prever o desenrolar dessa ambição e até seria prudente que esse Ícaro não voasse tão alto, pois se tem uma coisa que não falta no Rio de Janeiro é Sol: a primeira edição parece ter fluído bem, mas a constante quebra de expectativas da organização precisa ser um lembrete de que tudo está longe de ser impecável. E também, fica a lição para 2026: o frenesi não veio das estrelas já consagradas pela TV, mas de trabalhos que se fizeram gigantes por conta própria.

 

*Foto: Mariana Ricci (espetáculo Macacos, com Clayton Nascimento)

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

Compartilhar em
Sobre
Gabriel Fontoura

Gabriel Fontoura

Ator, produtor, dramaturgo e — agora — crítico teatral, Gabriel é carioca de nascença, mas radicado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ele fundou a Cia de Teatro Uz Outrus, em 2010, e integrou a Rede Baixada em Cena e a primeira diretoria da Arcádia Iguaçuana dos Amigos das Artes e da Cultura. Pesquisador independente sobre a história do teatro comercial no Rio de Janeiro e o papel da crítica no fazer teatral atualmente.

InfTEATRO em números

0 peças no site
0 em cartaz
0 colunas
0 entrevistas

Receba as nossas novidades

Ao se inscrever você concorda com a nossa política de privacidade

Apoios e Parcerias

Inf Busca Peças

Data
Preço

Este website armazena cookies no seu computador. Esses cookies são usados para melhorar sua experiência no site e fornecer serviços personalizados para você, tanto no website, quanto em outras mídias. Para saber mais sobre os cookies que usamos, consulte nossa Política de Privacidade

Não rastrearemos suas informações quando você visitar nosso site, porém, para cumprir suas preferências, precisaremos usar apenas um pequeno cookie, para que você não seja solicitado a tomar essa decisão novamente.