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Foto: Felipe Stucchi
Foto: Felipe Stucchi

Uma história de afeto com cheiro de cravo e flor de laranjeira

“Uma Boneca para Menitinha”, em cartaz até dezembro no Sesc Consolação,
consegue a proeza de falar de afetos, sonhos e gentilezas e, ao mesmo tempo, apresentar às crianças uma realidade de crueza, pobreza e simplicidade,
sem nenhum medo de também tocar em temas como a morte

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Vontade que deu de começar esse texto crítico já dizendo de cara do que eu mais gostei na montagem: a menina protagonista, de 8 anos, não é uma heroína cordata, delicada, idealizada, melosa, sonhadora, frágil e doce como princesa. Ah, que delícia. É uma menina de carne e osso, de verdade, dessas que, na sua idade, não finge só para agradar aos outros. Por exemplo, no dia se seu aniversário, não espera que o presente chegue a ela, ao contrário, sai pela casa vasculhando gavetas para ver se acha o pacote. Uma ansiedade típica de criança de verdade. Quando ganha o presente da avó, não finge que gostou só para agradar a velha. Fica claro que ela não gostou de ganhar boneca, mesmo sendo de porcelana, como a avó sempre sonhou em poder dar para a neta. E daí? Quando a avó lhe diz o nome da boneca, de novo ela é verdadeira: odeia o nome escolhido pela avó. Como assim Indaiá Maria? Esse nome não orna…

Foto: Geysa Bernardes

Ah, que delícia de personagem. Estou falando da protagonista da peça Uma Boneca para Menitinha, em cartaz até quase as vésperas do Natal, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, somente nas manhãs de sábado, começando às 11 horas. A diretora artística e dramaturgista Suzana Aragão (integrante dos Doutores da Alegria) e o diretor musical e compositor da trilha Renato Gama, juntos, souberam muito bem quais chaves usar na transposição para o palco do bem-sucedido livro infantil de Penélope Martins e Tiago de Melo Andrade, obra vencedora do Prêmio Biblioteca Nacional em 2022 e incluído no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2024. A realidade palpável da vida simples de uma criança preta, numa pequena comunidade ribeirinha, não sai de cena em nenhum momento, mesmo sendo um espetáculo que fala de afeto, de sonho, de sentimentos e gentilezas. Um conto bem singelo, sim, mas com os pés fincados em raízes e verdades.

Sempre acho que quando a fonte é boa, a adaptação já tem mais de meio caminho andado para dar certo. A narração da peça é tão cativante, tão eficiente, que não há como não louvar as palavras retiradas do livro, a prosa poética, a cadência da narrativa, o gênero literário favorecendo o gênero dramático. Do começo ao fim, o texto é música para nossos ouvidos, muito bem defendido pelo elenco, que pronuncia as frases com firmeza, ritmo e clareza. Parece óbvio, parece o bê-á-bá da contação de histórias, mas tem muito elenco que não dá conta desse talento de saber narrar.

Foto: Geysa Bernardes

Geni Cavalcante, João Invenção e Mawusi Tulani são os três iluminados em cena. O que eles narram/cantam/interpretam é a história de uma avó, daquelas de antigamente, querendo fazer uma surpresa para a neta no aniversário de 8 anos: dar de presente uma boneca de porcelana, que ela mesma nunca pôde ter. É um enredo de amor entre avó e neta, mas também tem no palco o pai da menina, genro da avó, um pai amoroso, desses que sabem fazer trança em cabelo de menina. Quanto à mãe, essa não pôde mais uma vez estar no aniversário da filha, porque o patrão não a liberou. Vida real escancarada para a plateia de crianças, mas de forma poética, cuidadosa e corajosa. Dureza da vida? Sim, mas é possível dosar o peso inevitável da realidade com retalhos de toalha florida à mesa, caixa de costura forrada com estampa, vestidos com babados e fitas, sobras de véu do casamento, o cheiro do cravo, o pé da roseira, a rosa em botão, a flor de laranjeira. Toda a poesia que mora na simplicidade. Como isso nos comove no espetáculo.

O que também é bastante perspicaz na peça é a forma como a morte perpassa a narrativa, sem medo de ferir a plateia com crueza. O pai, por exemplo, conta que só pôde dar um par de botas de presente para a filha porque eram as botas de uma menina que morreu picada por um escorpião que estava justamente dentro da bota quando ela foi calçá-la. Há muito pouco tempo encenadores teriam pudores em mencionar algo assim em peça dita infantil. De presente para a filha, as botas de uma morta. Uma pungência de nos travar a garganta. E querem saber o que a menina protagonista diz, quando sabe disso? É mais lindo ainda. Pensam que ela chora, fica com medo ou recusa as botas por não serem novas?! Nada isso. Ao contrário.  (spoiler) Ela diz: “Pai, descobre o que ela queria ter feito, usando as botas, que eu faço por ela.” Uma menina de 8 anos responde isso. Uma aula de pureza, generosidade e empatia, como, de resto, é toda a peça, do começo ao fim.

Foto: Geysa Bernardes

Falo, por fim, de algo impressionante que me encantou por duas vezes na sessão em que estive presente, dois momentos relacionados a participações de plateia – esse recurso que, de tanto ser usado no teatro para crianças, dá a impressão de ser fácil e de não exigir inteligência na proposição. Qual nada. Quando isso é feito de forma boba e fácil, a resposta das crianças pode vir boba, óbvia e fácil, Mas quando há delicadeza e sagacidade envolvidas, o resultado quase sempre é de arrepiar. E naquela sessão foi assim, pura magia. 1) A boneca de porcelana está no chão do palco, a avó não consegue abaixar para pegá-la e pede que uma criança da plateia o faça. O menino que subiu ao palco segurou a boneca com tamanho cuidado e solenidade, que foi de matar de lindo. Uma prova concreta do quanto aquela criança estava acreditando na história, mergulhada na história, encantada pela história. Tratou o objeto cênico com toda a delicadeza que muitas vezes nem os atores (os despreparados) conseguem atingir. 2) O outro momento foi quando a avó escondeu o presente, para a menina aniversariante não achar antes da hora certa. A menina começa a procurar e pede ajuda da plateia. Está aqui?, ela pergunta. Sim, estava. Mas, naquele dia, as crianças da plateia, solidárias à surpresa que a avó queria fazer, gritaram que não, não estava ali. Foi outra prova magnífica de que as crianças estavam tão inteiras em tudo aquilo, que não queriam estragar o andamento da narrativa. Entraram no pacto, no jogo. Ah, que maravilhoso. Me contem, sim, agora me contem: o que mais pode almejar um crítico veterano, depois de mais de 30 anos frequentando teatro infantil, senão ver uma peça assim, em que a plateia mirim esteja tão completamente entregue e empática? Saí de lá em estado de graça. Vá você também e leve crianças.

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Sobre
Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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