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Foto: Ligia Jardim
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Uma história real e antiga contada com vivacidade contemporânea

Assim é ‘Marie e a Descoberta Luminosa’, da Companhia Delas, que enche o palco de vida, sagacidade e ritmo, para mais uma vez retratar a força das mulheres pioneiras que romperam as barreiras da misoginia estrutural, como a cientista Marie Curie

Crítica Por Dib Carneiro Neto

O papel que a Companhia Delas desempenha no cenário do teatro para infância e juventude em nosso País é grandioso, arrebatador, desbravador. Nem sei se elas têm consciência disso. É um grupo longevo, de trajetória homogênea, que decifra – com censura livre – as várias facetas do universo feminino, não só nas temáticas e na escolha de personagens, mas na própria proposta do fazer teatral. Elas em cena. A Inteligência delas na construção de linguagens e estéticas. O ângulo das mulheres, o foco das mulheres, a língua das mulheres. Elas, delas, para elas, sobre elas.  Isso, diga-se, é importante demais de se praticar quando a plateia é infanto-juvenil! O que a Companhia Delas faz é descortinar para seres em formação, na mais tenra idade, a força do feminino, contribuindo assim para que a misoginia que assola este país de machistas não aumente ainda mais nas próximas gerações. E o melhor é que, ao fim e ao cabo, por decorrência de tanta qualidade e talento, os espetáculos também agradam – e muito – o público adulto.  É teatro bom e pronto.

Foto: Ligia Jardim

A mais nova dessas maravilhas cênicas se chama Marie e a Descoberta Luminosa e está encerrando sua primeira temporada neste fim de semana no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação. Que venham muitas outras temporadas. A peça, que fala sobre a vida da polonesa Marie Curie, cientista pioneira na pesquisa da radioatividade, encerra a trilogia As Três Marias, que incluiu os espetáculos Mary e os Monstros Marinhos, sobre Mary Anning, caçadora de fósseis, e Maria e os Insetos, sobre Maria Sybilla Merian, pioneira no registro visual de insetos.  Elas também já encenaram com muito brilho Clarice Lispector, Dino Buzzati, Ali Smith, Nina Raine, Gianni Rodari, Ana Roxo, Luis Alberto de Abreu. Sempre escolhas incríveis, que foram erigindo, tijolo por tijolo, um castelo sólido de títulos encenados.

Foto: Ligia Jardim

Com direção marcante de Rhena de Faria, Marie e a Descoberta Luminosa mais uma vez conta uma clássica história real de forma aberta, contemporânea, inventiva. Claro, muita gente pratica no palco naturalismos de novela, realismos formalistas – e tudo bem, há público para isso também. A vida de Marie Curie já foi contada linearmente, como uma história clássica de um tempo solene. Mas há quem, como a Companhia Delas e seus diretores convidados, opte pela vivacidade a cada cena, a cumplicidade com a plateia acima de tudo, a simplicidade eloquente de soluções cênicas inusitadas, o vaivém no tempo da dramaturgia, o troca-troca de papeis entre o elenco, a brincadeira das trilhas sonoras, enfim, o frescor de um teatro vivo para retratar pessoas mortas e contar histórias antigas. Assim é a Companhia Delas.

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De cara, já quero falar da opção em ter uma espécie de contrarregra em cena o tempo todo, um técnico de palco (Lucas Luciano) entrando e saindo, empurrando caixas e módulos, para ajeitar a versátil cenografia e posicionar os adereços, como se ele fosse um personagem e estivesse integrado plasticamente a todas as cenas, já que usa máscara contra radiação em uma peça que fala de radioatividade. Uma solução coerente, tanto quanto o chumbo adotado pela cenógrafa e designer de luz Marisa Bentivegna para prevalecer na estética e dialogar com a brincadeira geométrica do piso que, a meu ver, remete a jogos de tabuleiro, ao movimento de peças no jogo da vida da pioneira cientista. Não é à toa, aliás, que aparecem no texto citações ao poema No Meio do Caminho, de Carlos Drummond de Andrade. Nesse jogo resiliente e corajoso da mulher que insiste em estudar, quando querem que fique em casa, não faltaram “pedras no meio do caminho” e “retinas fatigadas”.

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No criativo processo de falar de Marie Curie com precisão e sensibilidade, a cena das pedaladas por Paris é uma das mais lindas e criativas, um jeito muito bem pensado de homenagear o gosto da cientista por pedalar. A cena da passagem do tempo, com as três atrizes sendo Marie, também é incrível. Aliás, Fernanda Castello Branco, Julia Ianina e Paula Weinfeld dão um banho de carisma, talento e integridade física em cena o tempo todo. São três meninas brincando juntas. O ápice da brincadeira é quando fingem que vão ao recital. São irmãs, são cúmplices, aprontando todas, sem deixar morrer o encantamento e a inocência da infância, auxiliadas por uma trilha acertada (Arthur Decloedt), que deixa respiros, estabelece climas e ambiências.

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Impressionante é a agilidade da cena em que aparecem as “petites Curies”, unidades móveis de radiografia que Marie usou na Primeira Guerra para auxiliar os médicos. Outro momento especial é a cena que abraça a frase: “Ela chorou tanto que ficamos submersas.” Repare também, quando for assistir, na sagacidade de introduzir conceitos do universo da ciência de forma clara e eficiente. O bigode que foge ilustra luminescência versus fosforescência. Magnetismo, por sua vez, é conceito usado na cena em que Marie conhece o marido. E assim por diante, de tal forma que não temos como não definir Marie e a Descoberta Luminosa, mais um primor da lavra da Companhia Delas, com o mesmo adjetivo que escolheram para o título. É, sim, uma peça luminosa. Cativantemente luminosa.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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