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Foto: Leekyung Kim
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“Veneno”, drama holandês sobre o luto dirigido por Eric Lenate, confronta a negação da memória

O ator Alexandre Galindo e a atriz Cléo De Páris protagonizam peça de Lot Vekemans em torno de casal destruído pela perda de um filho

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Na noite de 23 de agosto, o diretor Eric Lenate estreou nacionalmente na 17ª FITA (Festa Internacional de Teatro de Angra dos Reis) o seu novo espetáculo, Novas Diretrizes em Tempos de Paz. O texto de Bosco Brasil, celebrizado pelos atores Dan Stulbach e Tony Ramos no começo da década de 2000, volta em uma encenação que desafia qualquer obviedade.

Em um cenário giratório, os dois intérpretes da vez – o próprio Lenate e Fernando Billi – representam uma história em que o horror da guerra é desafiado pela emotividade da arte. Como teatro é o agora e vive aberto aos imprevistos, uma falha de microfonia prejudicou a compreensão das falas de Billi por boa parte da plateia naquela sessão. Ninguém duvidou, entretanto, da qualidade da montagem, que tem estreia prevista em São Paulo, no Teatro Estúdio, para 31 de outubro, e muitos saíram da apresentação impactados independentemente do problema técnico.

Novas Diretrizes em Tempos de Paz é o segundo trabalho de Lenate neste ano. O primeiro, Veneno, em cartaz nas segundas e terças no mesmo efervescente Teatro Estúdio, nos Campos Elíseos, estreou em abril e, por um excesso de ofertas na época ou à espera de uma leitura distanciada na hora certa, só vira assunto desta coluna agora, na reta final de uma nova temporada.

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Como Novas Diretrizes em Tempos de Paz e Veneno têm em comum o embate entre a negação e a provocação da memória para a retomada dos fatos, este texto segue a mesma trilha, a da tentativa de reconstituir o que foi visto e sentido há pelo menos quatro meses.

Escrito pela dramaturga holandesa Lot Vekemans, de 60 anos, Veneno ganha a primeira encenação brasileira protagonizada pelo ator Alexandre Galindo e a atriz Cléo De Páris.  Com o título de Gif, a peça teve lançamento em 2009 no Minnemeers, na cidade de Gante, na Bélgica, com direção de Johan Simons e atuações de Elsie de Brauw e Steven van Watermeulen, ganhando traduções para o alemão, francês, russo e espanhol. O texto foi descoberto pelo ator e diretor Cesar Augusto, que teve contato com a obra em um trabalho realizado entre artistas brasileiros e holandeses e o recomendou para Galindo. Ele, por sua vez, encaminhou a peça para Lenate em 2021.

O tema é semelhante a tantas outras dramaturgias que envolvem um casal. Um homem e uma mulher estão presos entre quatro paredes por uma razão que, à medida que o tempo passa, fica mais clara e veladamente se faz a discussão de um relacionamento abortado, neste caso, por uma tragédia. O drama é sobre o luto e a incapacidade do ser humano de lidar com as perdas, nada de muito inovador, mas tudo bastante transformador quando se tem um diretor capaz de dificultar a forma de se contar uma história para que ela chegue embalada em mais beleza ao público.

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“Sabe o que eu acho estranho? Que as coisas só acontecem quando já não importam mais. Quando você na verdade não precisa”, diz Ela, a personagem feminina sem nome defendida por Cléo De Páris. O casal se conheceu há 20 anos, se apaixonou, teve um filho e, há uma década, se separou sem um adeus formal.

Na noite de 31 de dezembro de 1999, poucas horas antes da virada do milênio, Ele, o personagem masculino sem nome de Alexandre Galindo, fez as malas e deixou a casa. Não teria condições de abraçá-la e brindar a meia-noite de mais um ano perdido. “Vejo uma história, um passado, principalmente isso. Um passado que deu errado. Uma história que deu errado”, fala ele, agora.

Ele e Ela perderam um filho, Jacob, em um atropelamento e, assim, se perderam um do outro – mas isso se demora um pouco para ser descoberto. Diante da tragédia, não foi possível continuar o casamento, pelo menos para ele, e, na tentativa de olhar para frente, o marido deixou a companheira esfacelada para trás.

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O reencontro se dá no cemitério em que o menino foi enterrado. Eles receberam uma carta com o comunicado de que será necessário remover os restos do garoto devido à contaminação no solo pelo veneno vazado de uma antiga fábrica de gás. Os dois ficarão frente a frente e, quem sabe, terão a conversa adiada desde 31 de dezembro de 1999.

Ninguém parece bem até hoje. Ele, pelo menos, tentou reconstruir a vida. Mora na Normandia, há dois anos e meio vive um novo relacionamento e será pai em breve. Ela ficou estagnada, parou no tempo mesmo depois de procurar todos os tipos de ajuda e, até na hora de esquentar a água para o café, é no filho morto que pensa. Tudo é duro, tudo é difícil, tudo é sombrio para os dois. Cada um tem um jeito próprio de lidar com o luto e, dentro deste tom cinza, Lenate constrói a sua encenação.

Nada é vivo, pulsante como em Novas Diretrizes em Tempos de Paz. No texto de Bosco Brasil existe o otimismo, a perspectiva mesmo sob ameaça de uma nova vida, quase a certeza de um final feliz, então a roda gira. Em Veneno, tudo é tristeza, dor, amargura. O cenário, o som e a luz criados por Lenate mostram esse vazio, essa geladeira, onde se tem, no máximo, algumas cadeiras, uma máquina de café, um bebedouro. Daqui a pouco, aparece um pedaço de pão, uma garrafa de vinho, não adianta, nada ameniza nada.

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Neste espaço, há duas pessoas falando e sofrendo sem parar, com a certeza de que saindo dali vão continuar sofrendo, talvez mais. As falas de Galindo e Cléo são quase monocórdicas, com sílabas marcadas e, em alguns casos, acavaladas, uma palavra em cima da outra, disparadas na pressa ou na intenção de que não sejam plenamente entendidas.

A habilidade na encenação é algo evidente na obra de Lenate desde muito cedo, graças a sua base privilegiada. Aos 22 anos, ele chegou ao CPT (Centro de Pesquisa Teatral), comandado por diretor Antunes Filho (1929-2019) no Sesc Consolação, e ocupou um espaço que só tinha sido de outro jovem diretor, Ulysses Cruz, nos anos de 1980.

Lenate foi o único encenador, depois de Ulysses, formado sob a orientação de Antunes e estreou em 2008 o espetáculo O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade. O texto inédito de Silvia Gomez, produzido no CPT, foi bem recebido pelo público e fartamente elogiado pela crítica. A montagem de apurado senso estético rendeu interpretações marcantes a Paula Arruda, Carlos Morelli, Patrícia Carvalho e Adriano Coelho.

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A partir desta revelação, Lenate comprovou o talento e sensibilidade em trabalhos tão diversos quanto Celebração, de Harold Pinter, Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, Refluxo, de Angela Ribeiro, e Love Love Love, de Mike Bartlett. Mais recentemente, criou as encenações de Misery, de Stephen King, e The Money Shot, de Neil LaBute, e, como grande ator que é, a exemplo do que exibe em Novas Diretrizes em Tempos de Paz, personificou um extraordinário bailarino russo Nijinsky (1890-1950) no solo Testemunho Líquido, dirigido por Erica Montanheiro em 2019.

Com Cléo De Páris, Lenate trabalhou como diretor em Ludwig e Suas Irmãs, texto do austríaco Thomas Bernhard em 2015, e dividiu o palco em Nosferatu, peça comandada por Fábio Mazzoni em 2013. Em Veneno, a atriz alcança um grau surpreendente de maturidade apoiada em uma interpretação técnica que recorre a doses mínimas e certeiras de emoção para ilustrar o sofrimento da personagem.

Forjada em mais de uma década de experiência com a Cia. Os Satyros, Cléo, antes tão associada aos trabalhos de composição, entrega uma interpretação seca, econômica e complexa justamente por se apoiar em uma linearidade emotiva. Ao contrário do personagem masculino, ela começa e termina a peça sem maiores transformações – o que representa um ponto de dificuldade para qualquer artista.

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Esta emotividade um pouco mais extravasada é o trunfo da interpretação de Alexandre Galindo, reconhecida com uma indicação ao Prêmio Shell de melhor do ano. O ator salienta o comportamento seco, duro, defensivo e até cruel do personagem diante da ex-mulher sem esconder uma fragilidade capaz de fazê-lo desabar a qualquer momento.

Galindo vem de uma trajetória de papéis discretos que pouco chamaram a atenção para a sua presença – como em A Tropa, texto de Gustavo Pinheiro dirigido por Cesar Augusto, e Misery, do mesmo Lenate. No ano passado, a sua impactante composição na pele do patriarca Jonas, da versão do diretor Jorge Farjalla para Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, revelou um intérprete que quando se entrega a um diretor ambicioso alcança um resultado de fôlego ímpar.

Tal química acontece porque Lenate sabe bem que o bom teatro é basicamente apoiado em bom texto e bons atores. Como, porém, é um profissional que sabe decifrar e oferecer novas camadas aos colegas e ao público entende que a assinatura de um diretor e a busca pela teatralidade são fundamentais para fazer uma boa peça ser considerada um possível grande espetáculo.

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Lenate inventa na dose certa sem escorregar na própria viagem ou se tornar pouco palatável ao público. A dramaturgia de Lot Vekemans para Veneno nada mais é que uma tardia D.R. (discussão de relação) de um casal que precisa enterrar de vez o passado. Talvez a mesma história pudesse ser contada em um restaurante ou na sala de um apartamento, mas é na ambientação de um cemitério que as afinidades de Lot Vekemans e Eric Lenate se cruzam.

A dor, mesmo que cada um a sinta de um jeito, é quase sempre óbvia. Para encontrar a teatralidade, porém, é preciso que ela seja mais sofrida e sombria. Caso Lot Vekemans não tivesse escolhido o cemitério como cenário de sua ação é possível que Lenate tomasse a decisão de transferi-la para uma necrópole com o objetivo de enriquecer a sua encenação.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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