A Quito isso, a Quito aquilo. É Quito pra lá, Quito pra cá. Carinhosamente, parte de seu sobrenome virou a forma como ela é chamada e lembrada. Há muito que reverenciar essa tal de Quito. Muito que respeitá-la. Premiada atriz, produtora e encenadora, a também advogada Cristiane Paoli-Quito foi diretora, entre 2005 e 2009, da Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP), onde leciona. Projeta-se na cena teatral paulistana nos anos 1990, com espetáculos de Commedia Dell’Arte. Depois se volta para a dança, sempre pesquisando a dramaturgia do intérprete em improvisação. Fundou com Tica Lemos a Companhia Nova Dança 4.
E não demorou para que entrasse – ao mesmo tempo cuidadosa e firme – no fértil terreno do teatro para crianças e jovens, sobretudo a partir de suas experiências com grupos de alunos da EAD. Virei seu fã a partir dos trabalhos que realizou com o Grupo 59 de Teatro – trabalhos que ela batiza de “compêndios”. É seu jeito de trabalhar uma adaptação de livro para o palco: compêndio. Seu mestrado foi sobre isso. O elenco analisa ativamente o texto que vai encenar e, em seguida, mergulha corretamente na fase de articulação das palavras do autor, sem nada tirar nem pôr. O livro vai inteiro para a cena. Cada resultado lindo que a Quito consegue com isso…
Agora a vejo ativa em outra frente, abraçando um projeto do grupo Palhaços Sem Fronteiras Brasil e dirigindo palhaçaria das boas. Estão em cartaz até o fim de julho no Sesc Bom Retiro, com Memorável, que tem o subtítulo explicativo de Histórias Notáveis. Em agosto, aportam no Centro Cultural Olido e depois no Teatro Alfredo Mesquita. É uma Quito em sua melhor forma. Uma regente e tanto, dando cor, forma, poesia, coerência e ritmo para uma ideia que já nasce tocante: encenar algumas histórias reais das andanças desses nobres nômades pelo mundão afora sem porteiras. Sem fronteiras.
No Brasil desde 2016, a organização internacional Palhaço Sem Fronteiras (Clowns Without Borders) existe para levar espetáculos a crianças em situações de vulnerabilidade socioeconômica, crises climáticas e estados de violência. É uma rede que já conta com 80 artistas e já atuou em 10 estados brasileiros. Um de seus projetos mais notáveis ocorreu junto às populações ribeirinhas do Rio Doce, impactadas pelo desastre ambiental em Mariana (MG). Memorável nasceu para relembrar alguns desses momentos – e o título não poderia ser melhor.
É, inegavelmente, um espetáculo de caráter institucional, desses que têm o objetivo declarado de divulgar o trabalho de uma organização. Memorável é peça feita para se louvar a importância e o sentido da missão dos Palhaços Sem Fronteiras. Mas quem dera todas as peças institucionais conseguissem essa mesma potência criativa que eles conseguiram. O recado é dado com puro encantamento, empatia, talento a toda prova. Emoção e graça. O caráter hagiográfico, por assim dizer, dilui-se na harmônica e efetiva realização artística. E a Quito tem tudo a ver com isso, juntamente com a belíssima dramaturgia de Ana Pessoa. Texto e direção entenderam que contar as histórias, encenando-as com espontaneidade e honestidade, seria a melhor forma de apresentar ao público o que fazem na prática os Palhaços Sem Fronteiras.
De cara, o deslumbramento se instala no palco. A entrada do elenco é um dos mais belos inícios de peça que já vi nos últimos tempos. O recurso do teatro de sombras mostra as silhuetas do quarteto de palhaços, num cortejo musical de arrepiar de lindo. Música calma, cadenciada, que vai crescendo aos poucos, luz baixa, gestos e olhares afetivos. Uma plasticidade se instala desde o início, com o auxílio luxuoso dos figurinos de Claudia Schapira e a cenografia e desenho de luz de Marisa Bentivegna.
Schapira sobrepõe peças amplas, para conforto dos intérpretes, harmoniza as cores com força nos detalhes de golas, barras e coletes e não abre mão dos calçados e chapéus clássicos da palhaçaria. Bentivegna mexe com nossa alma, na sua dança de tons e temperaturas, de acordo com a intensidade de cada história contada. E a memória do circo cabe todinha na singeleza de um cenário que recorta a parte pelo todo, usando a síntese sugestiva para remeter à grandiosidade contida em uma lona aberta. “Um oásis”, diz a palhaça, ao pisar pela primeira vez no círculo mítico do chão-picadeiro. “Meu oásis predileto”, completa. E arremata com a pergunta que resume todas as intenções do espetáculo: ”Como viemos parar aqui?”
São as respostas para essa pergunta-síntese, feita assim logo de saída, que vão alinhavar história por história, viagem por viagem, ao longo do espetáculo. Ana Pessoa soube escrever com perspicácia para inserir as chaves certas que levam às tais “histórias notáveis” do grupo. Percebe-se, frase a frase, o quanto a proposta memorialística encantou a dramaturga, que sabiamente evitou pieguices derramadas, potencializando a força da narrativa.
Nenhuma história se estende mais do que o tempo necessário. O texto alinhava e borda, fisgando nossa emoção sem o menor perigo de fastio. Se são artistas sem fronteiras, então que se lembre dos muros. Para que tantos muros pelo mundo? E se eles e elas viajam levando arte onde só mora a adversidade, então que se faça uma pungente definição do refugiado: “pessoa escondida para ser esquecida”. Assim é a dramaturgia de Memorável. Palavras são emparelhadas com inteligência. E questões prementes vão despontando feito pílulas. Um milhão de crianças hoje em situações de emergência? Já não basta? E reparo em mais um ótimo achado: sempre a necessidade de reforçar que há algo secreto nos relatos. Algo que não se pode dizer, não se pode nomear. Esse mero detalhe, que parece estar ali só para render piada de palhaço, diz muito sobre os ambientes periculosos e inóspitos por onde atuam os Palhaços Sem Fronteiras.
A direção de Quito soube intercalar tudo isso com mais duas frentes de pura sedução: a música e os números circenses. Aline Moreno (a palhaça Donatella Afonsina), Arthur Toyoshima (o Jean Pierre), Renato Ribeiro (Claudius) e Tetê Purezempla têm talento suficiente para o que der e vier. Emocionar, cantar, dançar, equilibrar, tropeçar, rebolar, pular, palhaçar. Formam um quarteto empático, que funciona bem no coletivo e também rende bastante nos momentos solos. Eles nos transmitem paz, embevecimento, vontade de abraçá-los, de tê-los como amigos. Deve ser por força do treino em lidar com públicos tão machucados. Aprenderam a ser leves e acolhedores. Isso mesmo: acolhem o público do começo ao fim, sem arroubos gritalhões, sem histrionismos ególatras. Que quarteto delicioso.
Não se pode deixar de falar do bom gosto nas canções, com criação e direção musical de Tetê Purezempla, e nos acertos na escolha dos números típicos de picadeiro. O chapéu que parece ter autonomia rende uma cena ótima de Claudius, assim como o bambolê gigante de Donatella, só para ficar em dois exemplos. Entre as canções, a do dromedário com o camelo é divertidíssima, tanto quanto a das tortillas “pupusas” salvadorenhas, também para citar só duas. Cena arrepiante é quando a palhaça vai se despedir de uma criança que parte de barco pelo rio, e, em vez de palavras de despedida, usa o sax para “descrever” a conversa – e a canção é nada menos do que a maravilhosa Palhaço, de Egberto Gismonti. Que bela direção musical de Tetê. E eu não disse que era puro deslumbramento do começo ao fim? Na cena final, quem resiste à Lua Branca, de Chiquinha Gonzaga? Como se ouve no texto da própria peça, na história que se passa no México, vendo esse Memorável, numa manhã de domingo invernal paulistano, “meu coração voou”. Não perca. O seu vai voar também, garanto.
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