“Meu primeiro trabalho no teatro foi com Fernanda Montenegro. Depois trabalhei muito com Miguel Falabella. ” Essa fala faz brilhar os olhos de qualquer ator e poderia soar como uma história inesperada. Isso acontece porque, ao pensarmos em teatro, é quase automático pensarmos nos atores. Foi assim que começou minha conversa com um técnico de teatro com quem trabalhei no meu primeiro musical. Ele não sabia ao certo o tamanho de Fernandona ou de Miguel em seus primeiros trabalhos, mas só rasgava elogios a como eles trabalhavam bem. Sua definição disso? “Eram muito comprometidos. Foi assim que vi que eu estava fazendo algo grandioso”. Esses são os trabalhadores do teatro. Da coxia, ao proscênio, da cabine à mesa de criativos, todos nós fazemos parte desse serviço essencial, desse conjunto de operários que faz a economia brasileira girar.
O dia do trabalhador é um dos poucos feriados a nível global que não é religioso. Ele é um marco para os direitos trabalhistas e felizmente um repouso para aqueles que “fazem a economia girar”. Suas comemorações vão de manifestações políticas a bem aproveitados dias de descanso. Um dia sem trabalhar, um dia com menos trânsito, um dia com transportes públicos mais vazios. Contudo, para que isso aconteça há os chamados “serviços essenciais”. Garis, médicos e motoristas são alguns dos primeiros exemplos. Verdadeiramente a lista é longa e acredito que não muito surpreendente – a não ser por um serviço essencial que creio não estar no topo de quem pensa essa lista: os trabalhadores de espetáculos teatrais.
Enquanto atriz, sempre me reconheci como uma árdua operária das artes cênicas, e tenho certeza de que meus pares reconhecem sua posição enquanto trabalhadores. Muitas vezes essa percepção vem inclusive pelos sacrifícios, pelas exigências e pelas longas horas de trabalho. Mas será que os atores enxergam a si como trabalhadores essenciais? Será que no almoço de Páscoa, que há poucas semanas se deu nas casas do Brasil, a família os enxergou como trabalhadores essenciais? Será que os técnicos e os criativos percebem que a ausência de feriados em suas rotinas se deve ao fato de serem considerados essenciais? De que forma, afinal, podemos sustentar a ideia de que somos essenciais?
Muitas vezes o impacto da cultura soa subjetivo, mas não é. Segundo dados do Observatório Itaú Cultural, a economia criativa empregou mais de 287 mil pessoas no 4º semestre de 2023. Houve uma variação positiva de 4%, se comparado com dados do mesmo período no ano anterior. Ainda segundo a instituição, em 2020 a Economia da Cultura e Indústrias Criativas (ECIC) movimentou R$230,14 bilhões, o que correspondia a 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil naquele ano, superando até outros setores fundamentais para economia do país, como o automobilístico. A cultura também é capaz de reduzir a pobreza por meio de empregos e oportunidades no setor, além de fortalecer a educação de qualidade e a justiça social, segundo a UNESCO. Isso se concretiza em casos reais como o da cidade de Medellín, conhecida pelo famoso traficante Pablo Escobar. Nela, as entidades públicas conseguiram diminuir a violência em 95% por meio do investimento em educação e cultura e pelo reconhecimento das manifestações culturais que já existiam localmente.
Porém, a relação entre cultura e desenvolvimento sustentável ainda não é consolidada no imaginário das pessoas. Os pilares ambientais, sociais e econômicos ainda ofuscam os culturais. Em termos mais corporativos, as empresas falam em cultura interna, em ODS, em ESG, Agenda 2030, mas ainda não avistaram a ponte entre desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico com a cultura. E a verdade é que isso se dá por não ser somente os números que sustentam o lado essencial do teatro.
A cultura é um direito. No dia do trabalhador, somos relembrados dos direitos trabalhistas. Apesar disso, em um mundo de fronteiras cada vez menos definidas entre a vida pessoal e a vida profissional, perde-se de vista a necessidade da garantia de direitos à cultura. Um dos direitos humanos a ser garantido pela ONU, por exemplo, é o de participar da vida cultural da comunidade. O teatro é um pilar de reafirmação da nossa própria cultura, e o direito à cultura é uma obrigação, não uma aspiração.
Os trabalhadores de espetáculos teatrais são protetores dessas manifestações culturais que são efêmeras. Isso é mais óbvio em casos de espetáculos com pautas políticas, identitárias, que envolvem questões sociais e pessoas em vulnerabilidade social. De fato, há uma força insubstituível nesses casos, mas não se resume neles. Toda produção teatral brasileira defende a nossa identidade cultural. Reconhecer a centralidade desses trabalhadores é consolidar nosso impacto e nossa responsabilidade na realidade social, econômica e ambiental do país.
Por isso, ir ao teatro e fazer teatro é aspirar a nação que queremos. Todo teatro é um ensaio do futuro. Ao assistir um espetáculo, somos capazes de encontrar lugares comuns, experienciar vidas que não vivemos e imaginar realidades que não são as nossas. Com o teatro, vemos a vida por outros olhos, outros filtros, outras lentes e assim criamos um repertório muito maior do que aquele que a vida mundana nos permite.
É por todas essas frentes, materiais e imateriais, que nos tornamos essenciais. Seja trabalhando com grandes nomes do teatro brasileiro ou em pequenos projetos-escola, o espetáculo de teatro é serviço essencial. Será pelas frestas abertas pela cultura que encontraremos novos caminhos para os obstáculos econômicos, tecnológicos e sociais, mas também para os dilemas e angústias pessoais que emergem a todo canto nesse assustador novo mundo de 2025.
Dessa forma, neste dia do trabalhador, faço dois convites. O primeiro a meus pares. Hoje não será um dia de descanso para nós, operários teatrais, e justamente por isso, não podemos deixar de refletir. Pensemos sobre nossos trabalhos, direitos e deveres. Vamos lembrar que recebemos em nossas plateias inúmeros trabalhadores que devem ter seus direitos à cultura assegurados. Isso é o essencial do nosso trabalho. Sejamos comprometidos com essa arte que ensaia o futuro. O segundo convite é para aqueles que veem nosso trabalho de longe, seja na plateia, em um panfleto ou em um cartaz na rua. Estejam atentos às brechas de fruição, de entretenimento, de reflexão sobre a realidade e de construção das nossas identidades no meio desse mundo que muitas vezes é atordoante. E, para isso, sejam sempre muito bem-vindos ao teatro, pois a cultura pode ser a chave para o futuro que vislumbramos juntos.