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Foto: Guto Muniz
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“Um Jardim para Tchekhov” é regado por um humor poético que, possivelmente, cairia no agrado do dramaturgo russo

Com Maria Padilha, a comédia escrita por Pedro Brício e dirigida por Georgette Fadel dispensa excessos intelectuais para dialogar com “O Jardim das Cerejeiras”

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Escrita entre 1903 e os primeiros dias de 1904, O Jardim das Cerejeiras foi definida por seu autor, o russo Anton Tchekhov (1860-1904), como uma comédia em quatro atos. A história enfoca uma decadente família de aristocratas em sua propriedade rural prestes a ser leiloada. O dinheiro mudou de mãos, e o cerejal, glorioso no passado, pode dar espaço a casas de veraneio, o que contraria os irmãos Liuba e Lenid, mas parece ser a única salvação diante da falência.

O diretor Constantin Stanislavski (1863-1938) enxergou a peça como um drama que contava, inclusive, com elementos de tragédia, e foi assim que, apesar da resistência de Tchekhov, O Jardim das Cerejeiras ganhou a cena no Teatro de Arte de Moscou no mesmo 1904. O sucesso da encenação não deixou dúvidas e, a partir da visão de Stanislavski, o texto ficou marcado pelo viés dramático.

Mais de um século depois, o dramaturgo Pedro Brício e a diretora Georgette Fadel colocam no palco Um Jardim para Tchekhov, que, passou por Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e, agora, pode ser visto no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. É bom avisar aos puristas que não se trata de uma releitura da obra-prima de Tchekhov, mas um diálogo contemporâneo criado em cima do texto do autor russo que faz suscitar outras características, entre elas o humor.

Foto: Guto Muniz

Provocado pela atriz Maria Padilha, Brício escreveu uma trama no Rio de Janeiro dos dias atuais. Nela, os valores de um teatro mais tradicional e de montagens grandiosas são colocados à prova, assim, como no começo do século XX, a beleza das cerejeiras poderia ser encarada como um capricho dos herdeiros da fazenda, que, depois de passar por várias gerações, não se sustenta mais.

Assim que embarca em um táxi, carregada de malas, Alma Duran (interpretada por Maria Padilha) diz ao motorista, citando uma fala de Arkádina, uma das personagens de A Gaivota, outra peça de Tchekhov: “Quando penso na minha profissão, eu não tenho medo da vida”. Alma é uma atriz que já conheceu o sucesso nos palcos e conquistou momentos de popularidade na televisão. Vendeu imóveis e carros para bancar projetos teatrais e, por vezes, não alcançou o retorno financeiro esperado. Há três anos, não trabalha e o que lhe resta é morar de favor no apartamento da filha e do genro (vividos por Olívia Torres e Erom Cordeiro) em um grande prédio de apartamentos.

Isadora, a filha, é uma médica pragmática, que não entende o idealismo da mãe, apesar de, conforme Alma, nunca ter lhe faltado nada em sua formação. O seu marido, Otto, estudou teatro na adolescência, só que se tornou um delegado de polícia e se sente ameaçado pela violência dominante na cidade. O casamento não vai bem das pernas, e a chegada de Alma acelera os conflitos. Para defender alguns trocados, a protagonista começa a dar aulas de interpretação para a jovem Lalá (representada por Iohanna Carvalho), que vai prestar vestibular de artes cênicas.

Alma não disfarça o choque de realidade. Um fio de ilusão, porém, a mantém de pé. Ela planeja produzir O Jardim das Cerejeiras e, na pele de Liuba, entraria em evidência novamente. “É como se alguma coisa muito boa fosse acontecer comigo. De novo”, pressente ela.

Fumando um cigarro no playground do edifício, ela conhece um homem misterioso (papel de Leonardo Medeiros) que se identifica como Tchekhov e se agarra a esse encontro como uma resposta salvadora do destino. “Finalmente, alguém da minha enfermaria”, brinca ela, ainda surpresa na hora da apresentação.

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Trata-se de um delírio? Seria o sujeito um aproveitador ou uma reencarnação do escritor? Talvez, quem sabe, seja um daqueles milagres do teatro? Não importa. Alma embarca na conversa do tal russo perdido no Rio de Janeiro e acha, enfim, alguém com quem pode compartilhar alguma esperança e olhar para frente.

A metalinguagem se tornou frequente no teatro brasileiro nas últimas duas décadas. Nesta temporada, outro espetáculo, Ao Vivo [Dentro da Cabeça de Alguém], cartaz do Teatro do Sesi, usa referências de A Gaivota, do mesmo Tchekhov, para criar sua narrativa. Peças clássicas inseridas na realidade ressignificando mensagens do passado, fragmentos de dramaturgia como apoio de montagens biográficas ou adaptações de textos antigos com atualização politicamente corretas. Tem de tudo na cena nacional.

O que Brício propõe, entretanto, em Um Jardim para Tchekhov é, no mínimo, diferente do que se está habituado a ver. O autor explora trechos e elementos da obra do dramaturgo russo sem nenhum traço intelectual excessivo capaz de impossibilitar a compreensão do espectador que não carrega o conhecimento das inspirações originais na bagagem.

Ninguém precisa conhecer O Jardim das Cerejeiras ou até mesmo ter ouvido falar de Anton Tchekhov para entender Um Jardim para Tchekhov. Sem nenhuma imposição ou excesso cerebral, existe ali a premissa de contar uma história, a de Alma Duran, uma artista decadente que nutre o desejo quase impossível de montar uma peça de estrutura nada modesta, e o resto da mensagem atinge o receptor como ele se mostrar disposto a absorvê-la.

Alguns podem procurar decifrar as camadas ali existentes, outros, simplesmente, se sentirão diante de uma situação cotidiana de uma família que, aos poucos, começa a ser desconectar da vida real. E o que faz todo mundo se sentir livre para entender Um Jardim para Tchekhov é o humor. Sim, aquela tal comicidade imaginada pelo escritor russo no começo do século passado para ter reencontrado o seu lugar.

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Maria Padilha é uma atriz que cultiva uma raiz próxima da de Marília Pêra (1943-2015). Mesmo que tenha feito grandes personagens dramáticas, carrega uma tinta tragicômica que se faz presente na maioria das suas composições e tal característica foi muito reforçada nas suas passagens pela televisão – o que facilidade a identificação do público. “A tristeza também é cômica, eu vejo isso em você, você é triste e você é cômica”, diz o Tchekhov de Leonardo Medeiros para Alma.

Alma Duran pode ser vista a maior parte do tempo como uma lunática, uma irresponsável, mas logo é possível reconhecê-la como uma artista em busca daquela que deve ser a sua realização final. O permanente temor de Isadora em relação a um possível suicídio da mãe reforça a ideia. Em sua interpretação, Padilha dá a densidade necessária para achar características de uma personalidade instável. Quem quiser vê-la, no entanto, só apenas como uma aloprada, tudo bem. A escolha é do espectador.

Assim como na peça As Três Irmãs, outro clássico de Tchekhov, Olga, Macha e Irina depositam todas as expectativas de uma vida melhor em uma mudança para Moscou, Alma tem o mesmo sentimento quanto à realização de seu espetáculo. Aqui, é perceptível mais uma das sutilezas empregadas por Brício na dramaturgia de estabelecer diálogos intertextuais sem pedantismos.

Como uma elegia ao teatro, Brício faz com que todos os outros personagens comecem a se contaminar pelo delírio cênico da protagonista. Menos, claro, Isadora, que, traumatizada com a eterna instabilidade da mãe, acaba isolada, algo que a atriz Olívia Torres desenha cuidadosamente desde o início da peça. No recorte mais naturalista do elenco, Iohanna Carvalho apresenta uma Lalá prática, que, afinal, paga as contas como motorista de carro de aplicativo e questiona as sugestões de Alma, mas persegue a vocação de uma atriz do seu tempo.

O suposto Tchekhov, seja ele quem for, é a própria representação do teatro, algo sublinhado pela interpretação sob medida de Medeiros, que proporciona um salto na montagem assim que entra em cena, quase uma hora depois do início da peça. Sabendo que tem em mãos um personagem fundamental para a credibilidade do texto, Medeiros é um ponto de equilíbrio, o responsável por imprimir esse humor poético em meio a uma dose de fantasia.

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A surpresa é a virada de Otto, que vai do genro intolerante ao sujeito que vê o teatro como saída para sua vida condenada a ser breve. Mérito de Erom Cordeiro, que não apresenta o personagem como um delegado truculento ou um policial caricato, nos moldes de Nelson Rodrigues, que não conversaria mais com o Rio da atualidade. A sensibilidade do intérprete coloca Otto desde sua apresentação como um sujeito tenso e pouco à vontade diante de seus conflitos existenciais. “Eu vou fazer isso, eu não quero mais morrer na rua, eu preciso de paz”, diz Cordeiro, na pele de Otto, depois de ser convencido pela sogra a interpretar um dos personagens mais emblemáticos de O Jardim das Cerejeiras, o emergente Lopakhin.

Um Jardim para Tchekhov tem lá seus mistérios. É um espetáculo de uma simplicidade que causa até um estranhamento inicial. O cenário, criado por Pedro Levorin e Georgette Fadel, traz uma mesa de jantar, algumas, cadeiras, um ventilador, bonecos infláveis, balões e quase mais nada, sendo constantemente valorizado pela iluminação de Maneco Quinderé.

O figurino de Carol Lobato, por sua vez, transita entre o tradicional e o contemporâneo, atingindo um caráter cada vez mais casual à medida que o cotidiano dos personagens passa a ser dominado pela aspiração artística. E, por incrível que pareça, são nestes pontos que salta aos olhos a assinatura da direção de Georgette Fadel.

Parece estranho ou até um possível equívoco a escalação de Georgette como a encenadora deste espetáculo. Atriz de grande força discursiva e política e diretora de mensagens tão ou mais pungentes, ela não seria um nome natural para a condução de Um Jardim para Tchekhov.

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O que se percebe, no entanto, é uma coletividade permeada em todos os pontos da montagem – seja nas intenções e no equilíbrio das interpretações, na proporcionalidade entre o humor e o drama e até na leveza com que Tchekhov, como autor e personagem, é trazido à cena. É óbvio que a Alma de Maria Padilha é a protagonista, só que, em momento algum, ela gravita sozinha em cena, tendo os colegas como meros coadjuvantes.

Georgette é uma artista que tem noção do seu ofício. Domina as manhas do popular teatro de rua e os malabarismos intelectuais dos experimentos mais nichados. Um Jardim para Tchekhov é um acerto em sua despretensiosa pretensão, mas, certamente, é o olho de Georgette que o deixa mais palatável a um grande público sem que o lirismo seja perdido. Seria fácil se deixar levar pelas concessões, só que a diretora não joga neste time e ressaltou um humor poético sem afastar a trama dos dois polos naturais, a fantasia e a realidade. Tchekhov possivelmente ficaria feliz com este jardim, a ponto de se sentir vingado da leitura de Stanislavski.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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