Em Preto (2017), montagem da Companhia Brasileira de Teatro em torno do racismo e das diferenças sociais, o diretor Marcio Abreu promoveu a releitura de uma cena da peça As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982). Nela, a atriz Grace Passô era a estilista Petra, típica representante da elite alemã, em conflito com sua jovem amante, a modelo Karin, revivida por Renata Sorrah.
A primeira versão brasileira do texto, encenada por Celso Nunes em 1982, trouxe Fernanda Montenegro e Renata Sorrah na pele das mesmas personagens e se tornou um marco na trajetória das duas artistas. Além de uma homenagem e de um certo estranhamento, Abreu propôs uma reflexão crítica ao colocar, além de Grace, uma atriz negra como Petra, Renata no mesmo papel que a celebrizou quase quatro décadas antes, desta vez aos 70 anos.
No final de Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém], novo espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro, em cartaz no Teatro do Sesi, em São Paulo, Renata enumera memórias que deveriam ser guardadas para a eternidade. Entre referências da cultura brasileira, como os shows de Maria Bethânia e a voz de Gal Costa, ela cita Fernanda Montenegro e Juliana Carneiro da Cunha, que interpretava a governanta muda Marlene, em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. É como se aquela passagem de Preto antecipasse a ideia de Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém] e até pudesse fazer parte desta nova peça.
Mas a estrutura narrativa de Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém] dialoga com outro clássico, A Gaivota, texto do russo Anton Tchekhov (1860-1904), mais um grande destaque do repertório de Renata Sorrah. Em 1974, a artista, aos 27 anos, interpretou Nina, a jovem aspirante a atriz que, em uma fazenda à beira de um lago, entra em contato com tipos de um mundo ao qual deseja pertencer.
Este microcosmo é representado por uma estrela do teatro, Arkádina, um escritor em evidência, Trigórin, e Treplev, o rapaz apaixonado por ela, incapaz de se desvencilhar das sombras familiares e voar como dramaturgo. Na encenação, dirigida por Jorge Lavelli, Renata contracenou com Tereza Rachel, Sérgio Britto, Carlos Augusto Strazzer e Cecil Thiré, entre outros.
Ao contrário do que costuma ter como regra criativa, Marcio Abreu já recebeu os atores e atrizes para o começo dos trabalhos na sala de ensaio com a dramaturgia de Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém] praticamente escrita. O diálogo entre a obra de Tchekhov e a memória de seus artistas-colaboradores parte de uma história real que Renata, com quem trabalha desde 2012, tinha lhe contado há algum tempo.
Naquele mesmo ano de 1974, a atriz saiu do Jardim Botânico e dirigia seu carro pelo Aterro do Flamengo a caminho da Sala Cecília Meirelles, na Lapa, quase no centro do Rio de Janeiro, onde o grupo ensaiava A Gaivota. Ela suspirava de felicidade com o processo, mas, tensa e muito crítica, se considerava ainda longe de encontrar a essência de Nina. De repente, no meio do trânsito, nas pistas do Aterro, Renata teve uma epifania, uma visão, algo que nunca soube explicar direito. O segredo de Tchekhov morava na simplicidade e, guiando o carro, sem pensar no pé no acelerador ou na troca de marchas, ela o desvendou e tudo clareou em sua cabeça.
Desde 2012, Renata é parte da Companhia Brasileira de Teatro e, junto do grupo, participou das peças Esta Criança, Krum (2015), Preto e Voo Livre (2023), além do monólogo on-line Em Companhia, transmitido de sua casa, na pandemia. Sempre chamou a atenção o quanto a sua participação no palco era dada em nível de igualdade com as dos demais colegas. Em nenhum dos trabalhos anteriores se percebeu a menor sede de autoafirmação de um protagonismo que até seria natural a uma estrela com quase seis décadas de carreira.
Dessa vez, porém, é diferente, mesmo que os atores Rodrigo Bolzan e Rafael Bacelar e as atrizes Bárbara Arakaki e Bianca Manicongo marquem presenças fundamentais e até protagonizem números solos. Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém] orbita em torno de Renata, seja de sua personalidade ou da forma com que ela conduz as referências sobre A Gaivota ou cenas discursivas, como aquele que lista fatos históricos, todos entre as décadas de 1950 e os dias atuais. Nas palavras de Abreu, é uma celebração à trajetória irretocável de uma atriz radical e ao seu encontro duradouro com a Companhia Brasileira de Teatro.
Na dramaturgia de Abreu, enquanto A Gaivota é revisada pelo elenco que ensaia aos olhos do público, os temas mais elementares da peça ganham a cena como se estivessem descolados da obra tchekhoviana. Nada é creditado ou mesmo associado de maneira explícita. Talvez a maioria da plateia sequer perceba que aquelas cenas se originem da peça escrita entre 1895 e 1896, mas isso não faz diferença na compreensão e só mostra a contemporaneidade de Tchekhov. Aliás, tivemos outra prova disto na atual temporada com a montagem de Tio Vânia, conduzida por Eduardo Tolentino de Araujo.
Renata é Arkádina e Bolzan interpreta Trigórin em uma cena em que a atriz veterana da ficção cobra do amante escritor uma maior atenção e afirma que seu desinteresse vem do fato de ele estar apaixonado por uma mulher mais jovem. É Arkádina e Trigórin falando sobre Nina (agora representada por Bárbara Arakaki), mas pode ser qualquer casal com uma relativa diferença de idade em que uma das partes é rondada pelo ciúme. É uma cena comum, possível ser vista em qualquer esquina e vivida por pessoas que já se sentiram preteridas, mas vem de Tchekhov.
Novamente na pele de Arkádina, Renata contracena com Rafael Bacelar, como Treplev, o filho que acaba de fracassar na tentativa de suicídio. Em um raro gesto de carinho, a mãe abandona a postura de diva e troca a atadura que envolve a cabeça do rapaz. Na sequência, o mesmo Bacelar emenda uma performance que entusiasma a plateia, fundindo elementos confessionais do início de sua vida profissional com os dramas de Treplev. É como se, através de Bacelar, o jovem problemático criado por Tchekhov se desprendesse da mãe e criasse asas para se assumir como artista. Parecem histórias da vida real. Parecem mesmo, mas, novamente, elas nascem de Tchekhov.
O diálogo com A Gaivota proposto pelo grupo vai se desenvolvendo assim, em cenas sucessivas, costurando personagens envolvidos com a arte. São duas atrizes, um escritor e um dramaturgo – com artista inseridos em situações cotidianas, como Renata dirigindo o seu carro ou Bacelar contando as preocupações maternas em relação ao futuro.
Não deixam de ser provocativas para a memória algumas passagens que tratam textualmente o impeachment sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff como um golpe e mencionam a prisão do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Elas são ditas no palco de Teatro do Sesi, localizado no Centro Cultural da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Foi lá, o prédio da Avenida Paulista, um dos principais cenários das manifestações antipetistas, entre 2015 e 2018.
Na mais belas das cenas, Abreu comete o atrevimento de ser Tchekhov e reescreve o desfecho de Nina ou, melhor, vai além do ponto final dado pelo autor. No encerramento do terceiro ato do original, a garota se muda para Moscou em busca do sucesso como atriz e, apesar de ser escalada para bons papeis, segundo Treplev, não alcança projeção alguma e, às vezes, até passa vergonha. Em meio ao desastre profissional, o relacionamento com Trigórin naufraga e o filho que teve acaba morrendo. Pobre Nina…
Derrotada, a personagem volta para o interior dois anos mais tarde e, a partir daqui, começa a ousadia de Abreu. O diretor recria um emocionante desfecho para Nina, narrado com vigor e emoção por Renata – aquela mesma intérprete da Nina, em 1974. A jovem, incapaz de suportar novas desilusões, enche os bolsos com pedras e mergulha no lago da fazenda, morrendo afogada – em uma citação ao suicídio da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941).
Na direita do palco, Bianca Manicongo, capaz de arrepiar até os menos sensíveis, interpreta a canção Love is Losing Game, composta e gravada por Amy Winehouse (1983-2011). Como em uma orquestra afinada, as vozes de Bianca e Renata – e por que não de Amy? – se fundem na narrativa em diferentes volumes e oferecem à plateia uma imagem deslumbrante complementada pela luz assinada por Nadja Naira. Inesquecível.
No permanente jogo de espelhos, Renata, que, na mesma noite, foi Arkádina e voltou a ser Nina, como há 50 anos, serve de corpo e voz a todos os artistas. Na hora em que ela dá o texto, não importa se a personagem tem 25 anos e a intérprete já conte 77. Assim como em Preto, na cena de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, o que vale é Renata e, a partir de Renata, Ao Vivo [dentro da cabeça de alguém] promove uma série de desafios aos espectadores. Todos são convidados a revisitar memórias recentes e antigas, individuais ou coletivas, românticas ou políticas, mas, principalmente, a viver aquele momento do teatro, que acontece ali, ao vivo, e, depois dos aplausos, só se mantém, nem que seja por um tempo, dentro da cabeça de alguém.
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