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Foto: Danton Valério
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Na pele do protagonista de “O Figurante”, Mateus Solano sua, sua muito e entrega um trabalho desafiador e pouco óbvio

Sob a direção de Miguel Thiré, o ator interpreta monólogo que surpreende o público com dramaturgia apoiada em repetições e encenação que recorre ao teatro físico

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Chega a chamar atenção o quanto o ator Mateus Solano transpira a partir da metade do monólogo O Figurante, dirigido por Miguel Thiré, em cartaz em São Paulo. A energia entregue ao personagem Augusto pode ser medida pelo suor visível do artista aos olhos de quem ocupa as primeiras fileiras do Teatro Renaissance. A manifestação do esforço não se deve apenas ao calor dos refletores que atinge o seu corpo, mas pelo exigente trabalho físico desenvolvido para um espetáculo que pode ser tudo para Solano, menos fácil.

A transpiração, perdoem o clichê, é resultado de uma bem-vinda inspiração e muita labuta. O Figurante, texto construído pelo ator em parceria com Thiré e Isabel Teixeira, desvia de uma curva óbvia, principalmente por se tratar de uma encenação pouco convencional. É uma peça diferente na exploração dos recursos de interpretação, se comparada ao que costuma ser entregue pelo artista na televisão – o veículo responsável por sua popularidade. Só este feito já se torna louvável. É comum ver atores e atrizes conhecidos e talentosos oferecendo em suas incursões teatrais performances semelhantes àquelas que o espectador se acostumou a receber deles através do audiovisual.

Se é para aparecer sozinho em um palco nu, Solano abraçou o desafio da empreitada e não se mostra acomodado. Desta forma, tudo o que acontece está em suas mãos. O Figurante é um solo que rende diversas leituras a quem se dispõe a assisti-lo, inclusive, críticas ao mundo do audiovisual, que, muitas vezes, não tem nada de glamouroso ou simpático.

Foto: Danton Valério

Com uma agenda cheia, Augusto tornou-se um figurante recorrente nas produções de televisão e cinema. Neste momento da trama, ganha o pão servindo de fundo para os personagens principais de uma novela e, no máximo, aparece no canto da tela dando um sorriso, cruzando a cena como um pedestre nas ruas ou sentado em torno de uma mesa de reuniões. “Você não é uma pessoa, você é uma função”, ouve ele no set de gravação, quando tenta sugerir uma ideia ou fazer algo que extrapole a encomenda.

Só que Augusto é um profissional sério, estudioso e, baseado nas sinopses enviadas, desenvolve em casa os personagens que pensa poder desempenhar. Mesmo sendo um figurante, o trabalho, na sua cabeça, não é se restringir a uma mera figuração. E todo dia ele faz tudo sempre igual. O relógio desperta, e Augusto corre para o chuveiro. Escova os dentes, se veste, toma café, idealiza o personagem, pega o ônibus lotado e chega ao estúdio. É tratado como um ser invisível na gravação ou, no máximo, vira alvo de descaso ou grosserias. Saindo de lá, entra em mais um ônibus abarrotado, chega em casa exausto e, no dia seguinte, cumpre o roteiro idêntico.

Como referência ao absurdo do autor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), a dramaturgia e a direção são estruturadas em repetições e quase todas as cenas parecem praticamente iguais. A escolha de Solano, Isabel e, principalmente, de Thiré é justificada. O dia a dia do personagem não admite alterações ou, pelo menos, não se espera que ele saia dos trilhos.

Foto: Danton Valério

Na primeira cena, se faz a imensa surpresa com a desenvoltura apresentada no palco por Solano. Ele dispensa a interpretação verbal em nome do teatro físico e recorre à mímica em um poderoso gestual que pontua todas as ações do personagem – tomar banho, escovar os dentes, fazer café –, tendo como fundo a trilha sonora composta por João Thiré, que remete a uma linha de montagem de fábrica.

O ótimo figurino, criado por Carol Lobato, forjado para, à primeira vista, parecer um terno, inclusive pela gravata vermelha, revela-se um macacão típico dos operários ou mecânicos – o que enrique as simbologias em torno da encenação.

Impactante no começo, o recurso dramatúrgico da repetição, porém, pode causar estranheza à plateia no decorrer da peça. Mas mesmo que todas as situações seguintes recorram basicamente aos mesmos expedientes até o fim da montagem e, talvez, por isso mesmo, O Figurante abre espaço para outras reflexões, como aquelas sobre o tédio de uma rotina, a massificação do profissional no mercado ou a anulação de um indivíduo.

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Então, Solano sua. Por isso, Solano transpira e esse indisfarçável suor, obviamente natural, contribui para novas leituras em relação ao próprio artista e ao seu papel ao longo de uma bem-sucedida carreira de mais de 20 anos, 15 deles diante das câmeras de televisão. Seria mais fácil Solano apenas verbalizar um texto e narrar o que Augusto faz antes de sair para a gravação ou depois que encerra o seu serviço. Sob a direção de movimentos de Toni Rodrigues, entretanto, o artista fala com o corpo e escapa da verborragia dominante no teatro nacional. Sim, porque o corpo fala – algo que, às vezes, artistas se esquecem quando sobem ao palco.

Enquanto Solano brilha em cena, o público se vê diante de um outro ator, Augusto, que não tem a chance de brilhar. “Ser ou não ser, esta é a questão”, diz o intérprete, repetidas vezes, assim que entra em cena. A citação da famosa fala do príncipe Hamlet na tragédia de William Shakespeare atravessa o espetáculo como uma dúvida que permeia a mente do público em relação às ações do protagonista.

Teria ele o sonho de se tornar um ator principal? Já que é invisível para o mundo, por que não muda de profissão e tenta ser relevante em outra tarefa? A resposta, talvez, seja simples. Augusto deve gostar de fazer isto ou se acostumou a pensar que só serve para desempenhar tal função.
Na verdade, ele não parece cogitar a hipótese. “Eu acho que todo mundo deveria gostar do trabalho que faz”, diz, lá pelas tantas, a um passageiro imaginário dentro no ônibus. “Eu acho que o mundo está do jeito que está porque as pessoas trabalham no que não gostam. Comigo é diferente, eu amo o que faço”, conclui, um pouco depois, melancólico, tentando convencer-se a si mesmo.

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Mateus Solano tem uma trajetória singular e marcada por uma supervalorização rara de ser verificada na sua geração. Ele despontou na televisão como o compositor Ronaldo Bôscoli (1928-1994) na minissérie Maysa, Quando Fala o Coração em 2009 e, no mesmo ano, foi escalado para interpretar irmãos gêmeos na novela Viver a Vida, o tipo de papel que não se entrega a um ator, digamos, mediano. Conquistou uma fama avassaladora como o mau-caráter Félix, da novela Amor à Vida, em 2013, que, em um milagre de folhetim, foi convertido a mocinho da trama. O público comprou a transformação e, com o ator Thiago Fragoso, Solano protagonizou o primeiro beijo entre homens no horário nobre da Globo, comovendo a todos na cena final.

Em recente entrevista a este que vos escreve, Solano confessou que sua cabeça deu um nó com a repercussão de Félix, a ponto de fazê-lo se sentir assombrado pelo personagem – e veio desta crise a ideia do argumento que resultou no monólogo O Figurante. Curioso é que, logo depois de Amor à Vida, Solano voltou aos palcos em uma peça bastante convencional, Do Tamanho do Mundo, que também tratava de um homem massacrado pela rotina. Talvez não se sentisse firme para o risco.

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Entre uma novela e outra, Solano não largou o teatro. Em 2016, ele protagonizou com Miguel Thiré uma comédia mais interessante, Selfie, escrita por Daniela Ocampo e dirigida por Marcos Caruso. Três anos depois, pintou e bordou ao lado do ator Luís Miranda em uma nova versão de O Mistério de Irma Vap, desta vez encenada por Jorge Farjalla. A dupla se revezou nos múltiplos personagens vividos por Marco Nanini e Ney Latorraca (1944-2024) na montagem brasileira original, lançada em 1986. Foi um passo a passo em busca de uma segurança que, agora, se mostra latente.

O Figurante é um espetáculo sobre os personagens que todos nós inventamos para sobreviver. Para Augusto, o figurante do título, o que sobrou foi criar um personagem a cada dia e ir levando até que o destino se encarregasse de obrigá-lo a rever a própria vida. E, no final da peça, que pode até ser otimista, uma trilha de mudança é desenhada.

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Talvez, no fundo das inseguranças comuns a todos os seres humanos, O Figurante seja o meio encontrado por Solano para enterrar de vez a imagem de Félix, pelo menos para quem for vê-lo no teatro. Para isso, ele protagoniza um texto sagaz, uma encenação incomum e prova a sua capacidade como um intérprete pronto para ir muito além do close e dos cacoetes típicos do meio televisivo.

Solano parece feliz por dar voz aos figurantes esquecidos e até a outros profissionais, que, algumas vezes, passam por uma exposição tão excessiva que enfrentam o risco do apagamento de si mesmos. Para fugir disto, ele entendeu que o melhor caminho só pode ser suar, suar muito.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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