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O Jogo de Cena

Coluna Por Chico Carvalho

Quando eu ainda era estudante de artes cênicas eu me lembro de ensaiar um trecho de Édipo Rei com uma colega de classe. Um exercício que fazia parte da disciplina de interpretação. A minha colega fazia a Jocasta, eu o Édipo. Estávamos um diante do outro e ela pegava nas minhas mãos com as mãos dela para tentar acalmar aquilo que atormentava o personagem – era o instante em que o Rei de Tebas já começava a suspeitar de que algo na sua história particular estava mal explicado, muito mal explicado. Uma cena dramática que representava o estalo inicial da queda do protagonista. Pois ela pegou nas minhas mãos, a atriz que representava a Jocasta e fez isso de uma forma delicada. E depois eu me lembro de olhar diretamente nos olhos dela, da Jocasta, da atriz que representava a Jocasta, e eles também, os olhos dela, transpareciam delicadeza. Quando ela começou a falar o texto de Sófocles, havia delicadeza na maneira dela dizer tudo aquilo que estava no texto, e eu pensei assim: puxa uma Jocasta delicada, por que não? Mas eu achei tudo aquilo tão esquisito. Porque tudo que ela fazia – e ia fazendo – estava tão organizado na delicadeza e pela delicadeza que não havia qualquer espaço para contradição alguma. Tudo combinava. Era de fato uma Jocasta delicada. E também bastante esquisita. Porque parecia fácil. Ainda se o componente delicado se reservasse às mãos e o texto surgisse com força contrária ao toque suave das mãos. Ou o inverso: a fala delicada e as mãos tensas… Mas não. Era a delicadeza em pessoa. E, impossível não dizer isso, essa integridade toda soava tão falso. Parece que Sófocles pede para que a gente não procure saída alguma para uma composição pura, para que aquelas figuras trágicas nunca se equilibrem numa gênese particular, numa emoção íntima. Aquilo que é público na tragédia deve ser mais teatral do que íntimo nessa medida cinematográfica. E aquela delicadeza parecia servir para um close cinematográfico, não para o palco. Falando de outra forma, as personagens trágicas, parece a mim, precisam da compreensão do ator de que o segredo está em apresentá-las para o público, e não em interpretá-las, vivê-las, porque elas não estão no registro da psicologia, elas são arquétipos, máscaras. Dessa forma, o ator precisa estar a todo instante presente diante da plateia para representar aquela figura ao invés de tomar as suas dores, viver as suas emoções. Ao fazer da sua Jocasta uma Jocasta inteiramente delicada, aquela minha colega de turma se tornava imediatamente real, imediatamente crível, imediatamente psicologizada, e isso, incrivelmente, matava toda a história. Matava o teatro. Lembro de tudo isso porque a Fernanda Torres acaba de ser indicada ao Oscar, e porque uma das cenas mais maravilhosas que eu vi dessa nossa estupenda atriz é uma em que ela falha diante de nós ao tentar dar “realidade” a uma mulher que de fato existia. Esse é o documentário Jogo de Cena, do Coutinho. Uma brincadeira entre vida e ficção. No filme, a Andrea Beltrão copia o discurso da mesma mulher que a Fernanda Torres tenta emular. Enquanto a Andrea Beltrão tem sucesso, se emociona, toma as palavras da outra como se fossem as suas palavras, e assim esconde da audiência os artifícios do jogo a ponto de tudo ser crível e verdadeiro, a Fernanda Torres falha. E quando falha quem entra em cena é a atriz revelando que é impossível traduzir a vida na arte sem uma mínima distância entre ator e personagem, sem que o ator esteja também em evidência para que os interlocutores saibam que tudo aquilo – ainda que próximo do real – continua sendo ficção. E é por esse intervalo nunca preenchido ou resolvido que é possível construir algo. Eu não sei vocês, mas eu acho que o desempenho deslumbrante da Fernanda Torres em ‘Ainda Estou Aqui’ só tem a força que vemos porque ela sabe que é impossível SER a Eunice Paiva, que é preciso, para dar vida a Eunice Paiva, não tentar ser ela, não se aproximar demais dessa figura, manter a distância, e, assim, preservar essa contradição fundamental entre jogo e vida. Ainda que a personagem seja uma mulher verídica, a atriz necessita contribuir com algum componente de entendimento de que o que estamos acompanhando é um produto narrativo de uma história que se passou, inscrevendo a realidade num tecido de memórias já próximas do território do artifício, do jogo, da brincadeira, do teatro. Curiosamente, a gente enxerga uma Eunice plenamente viva diante de nós porque temos uma atriz que sabe brincar com o jogo de cena. Uma atriz, enfim DE TEATRO que faz cinema. E um adendo importante: Andrea Beltrão é outra de nossas melhores atrizes que temos nesse país de estupendas mulheres que fazem teatro, e que fazem cinema.

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Chico Carvalho

Chico Carvalho

Ator, radialista e apresentador da Rádio Cultura FM de São Paulo. Formado em Artes Cênicas pela Unicamp e em Comunicação Social - Rádio e TV - pela Fundação Cásper Líbero. Mestre e doutor pelo Departamento de Artes da Unicamp.

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