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Foto: Rodrigo Palmieri
Foto: Rodrigo Palmieri

Quando um vestido vira ao mesmo tempo símbolo de afeto e alvo de intolerância

Questão de gênero aparece de forma inteligente e criativa no espetáculo infanto-juvenil ‘Denis e a Saga do Abraço’, da companhia República Ativa de Teatro, que faz quatro sessões gratuitas no Teatro Flávio Império, na zona leste paulistana

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Sempre que há um assunto da ordem do dia, que começa a aparecer frequentemente como tema de peças de teatro, o risco é grande de todo mundo se cansar ou os espetáculos virarem “o mais do mesmo”.  Tipo: Ai, meu Deus, mais outra peça sobre isso?!?! De novo?!

Temos constatado, no teatro para crianças, que muitos encenadores estão encarando a temática da questão de gênero, o que é incrível e, até pouco tempo atrás, inimaginável em palcos de peças infantis. Mas será que o desafio de descobrir novas abordagens para o mesmo assunto tem sido cumprido ou já estamos saturando o tema? Fiquemos, pois, de olho nisso, nós, público e crítica.

Foto: Rodrigo Palmieri

Em ‘Denis e a Saga do Abraço’, da cia. paulistana República Ativa de Teatro, a questão de gênero comparece como tema principal – e, glória das glórias, surge lindamente utilizado de forma muito inteligente, poética e criativa. Um caso exemplar de como falar de um tópico tão necessário sem repetir fórmulas, clichês ou militâncias ostensivas. Parabéns a todos os envolvidos por esse acerto. Teremos mais quatro chances de ver o espetáculo, 21 e 22 de maio (quarta e quinta), com duas sessões por dia, no Teatro Flavio Império, no distrito de Cangaíba, zona leste de São Paulo.

O espetáculo conta a história de Denis, que mora com o pai e irmãos. Não há mãe. Denis sempre mata saudades da mãe vendo uma foto dela em que está com determinado vestido, que depois ele acha no armário e se espanta/encanta. “Quando ela usava esse vestido da foto, sempre fazia verão – dentro e fora de mim”, diz o menino, sensível e poético, como, de resto, é todo o texto.

Foto: Rodrigo Palmieri

Eis que, num belo dia, ele decide vestir a roupa da mãe. Põe em si o tal vestido que tantas lembranças lhe trazem dela. Um gesto simples e ingênuo que provoca acontecimentos, julgamentos e maledicências. Denis vira alvo de todos que o rodeiam, sobretudo porque decide ir à escola usando o vestido. Mas, ao ser questionado, sua resposta é singela e tocante: “Me sinto abraçado por ela.” Ou seja, é uma criança em busca de afeto.

A peça põe foco nas questões de gênero tão mal compreendidas em nossa sociedade. Por que uma ação tão simples pode gerar tanta polêmica? É só um menino de vestido. Essa frase nos arrebata, em meio a tantas outras bem construídas, nada piegas e com potência de melodrama circense. Isso mesmo. A trupe, esperta e estudiosa, formada por Leandro Ivo, Rodrigo Palmieri, Vivi Gonçalves e Thiago Ubaldo, foi buscar, para dirigir a peça, um especialista em melodrama, Fernando Neves, que criou uma encenação à base de convenções e tipos bem delineados, assim como usou pausas para confidências narradas pelos personagens. Tudo fica claro o tempo todo e não há emoções transbordantes e ‘psicologizadas’ por parte do elenco. O resultado é magnífico.

Foto: Rodrigo Palmieri

Outra frase surge com potência de bomba, bem no auge das polêmicas e excessos de julgamento: “Você se sente bem vestido da sua própria opinião?” Denis se sente – e pronto. Mas e você, público que rotula, que sentencia, que pratica preconceitos diariamente, você se sente bem vestido disso tudo que destila pela vida? Isso é o que nos fica do espetáculo. Uma pergunta incômoda, doída e necessária, em que o mesmo substantivo concreto (vestido) vira verbo no particípio (vestido) e nos tonteia de realidade.

Usando como premissa a inocência e, depois, o sofrimento de uma criança, que só queria se sentir abraçada pela mãe ausente, o grupo nos brinda com uma peça que mexe e remexe nas feridas provocadas por valores contraditórios e ambíguos de uma sociedade hipócrita como a nossa. Gosto demais do formato entrecortado da dramaturgia, com cenas fragmentadas, que vão revelando pouco a pouco todo o quadro problematizante detonado por um gesto simples de menino, cujo pai tem orgulho de informar à plateia, brechtianamente: “Na minha casa, temos três regras: nada de falar sobre a mãe, nada de choro e nada de abraços.” Isso justifica a atitude de Denis, ou, pelo menos, a explica. Ele quer o abraço e o afeto negados, simbolizados pela metáfora do vestido da mãe.

Foto: Rodrigo Palmieri

“Engole o choro, sua mãe não vai mais voltar, isso é coisa de menina!” É o pai novamente enfiando agulhas no coração da plateia. Destaco, ainda, outra cena muito eficiente, impactante, plástica, visualmente eloquente: os outros atores, diante do protagonista de vestido, vão retirando do cenário panos esvoaçantes como véus e atirando-os contra Denis. Isso causa um efeito que vale mais do que mil palavras. Teatro bom é assim, feito de simbologias, gestos metafóricos, ações sugeridas de forma poética.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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