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Foto: Adriano Escanhuela
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“Seis Atores em Busca de Sérgio Cardoso” levanta questionamento evitado pela classe artística e, enquanto biografa o homenageado, encanta o público

Criado para celebrar o centenário do ator, o espetáculo dirigido por Rita Batata apresenta um fluxo cênico e narrativo pautado por múltiplas interpretações

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Desde que o teatro é teatro, o palco foi considerado aquele espaço em que o ator ganhava permissão para ser o que bem entendesse. Tanto que as peças de William Shakespeare (1564-1616), nos áureos tempos elisabetanos, eram interpretadas exclusivamente por homens, já que não era permitida a presença feminina. Felizmente, a fidelidade à representatividade de gênero evoluiu a partir do século 18, mas a máxima da suposta liberdade, principalmente apoiada na caracterização, permaneceu quase inquestionável até poucas décadas.

O ator Sérgio Cardoso (1925-1972), uma das grandes referências da moderna cena nacional, fez qualquer personagem ao seu alcance – e, para os que não estavam, ele dava um jeito. Foi homem, mulher, jovem, velho, deficiente, oriental e preto. Era um artista que acreditava no poder da composição e levou ao extremo a fala shakesperiana do “ser ou não ser” proferida na peça Hamlet que o revelou em 1948. Se o intérprete não se transformasse no personagem, de nada valeria, e, na lógica de Cardoso, o teatro não seria consumado.

Esta mentalidade envelheceu. E nem precisamos comparar com o que é praticado hoje, na segunda metade da década de 2020, quando cada intérprete deve se aproximar ao máximo do papel a ponto de conhecer os conflitos na pele e até apresentá-los em primeira pessoa. O tipo de teatro praticado por Cardoso já parecia velho quando o artista não contava nem duas décadas de carreira, nos anos de 1960.

Foto: Adriano Escanhuela

As revoluções iniciadas na década de 1950 pelo Teatro de Arena e pelo Teatro Oficina abriram espaço para o realismo e o naturalismo, e Cardoso, diante deste contexto, se sentiu perdido. Parecia mais ligados aos pioneiros João Caetano (1808-1863) ou Procópio Ferreira (1898-1979) que à geração que despontava como a do futuro e, de repente, virou a do presente. Foi buscar – e encontrou – espaço na televisão, mesmo sendo defenestrado por muitos fãs.

Perdidos, cautelosos, à procura de uma consciência que, por vezes, não se têm, mas é preciso se esforçar para ter. É assim que muitos artistas se sentem em 2025, na insegurança para não burlar linhas tênues que podem avalizar os seus desempenhos ou torná-los seres desprezíveis no tribunal da internet. Os atores e as atrizes que, antes podiam tudo, agora, recorrem a uma cautela na hora de escolher e criar personagens que, muitas vezes, surte o efeito contrário de despersonalizar os seus trabalhos.

Em uma temporada carente de surpresas, Seis Atores em Busca de Sérgio Cardoso, em cartaz na Sala Paschoal Carlos Magno do teatro que leva o nome do grande ator no Bixiga, em São Paulo, é tão interessante justamente por isso: levanta um questionamento que a classe artística evita para fugir de polêmicas e proporciona ao público um encantamento que se tornou raro nas tentativas de radiografar a realidade.

Foto: Adriano Escanhuela

Seis Atores em Busca de Sérgio Cardoso, dramaturgia e direção de Rita Batata, é um espetáculo que foge de qualquer fórmula quando o objetivo é homenagear uma celebridade. Talvez por não ter esta pretensão, a montagem cumpre todas as etapas que a faz resultar em um recorte biográfico original e capaz de prender o espectador.

Em um fluxo cênico e narrativo, as informações e as imagens são oferecidas sem caráter documental ou didático. O protagonista é apresentado, assim como vários personagens que cruzaram a sua vida, e, como ele era um ator, grandes momentos da dramaturgia universal e figuras conhecidas ampliam o alcance desta história.

As atrizes Bárbara Arakaki, Lilian Regina e Mariana Leme e os atores Bruno Lourenço, Felipe Ramos e Rafael Pimenta protagonizam um painel que mostra Sérgio Cardoso em múltiplas possibilidades e oferece o debate sobre a questão da representação. Em cena, todos são Sérgio Cardoso mesmo com a consciência de quem nenhum deles pode ser, o que automaticamente os libera para sê-lo.

Foto: Adriano Escanhuela

Assim, nesta peça, tem homens e mulheres que são Sérgio, e atores pretos e atrizes pretas como Sérgio, que era branco. Em uma das cenas, um ator que interpreta Sérgio representa uma personagem feminina, e tudo isto não seria aceito no panorama atual se a ideia não fosse a de questionar de até que ponto a arte pode se valer do artifício.

Obviamente, nenhum dos seis atores e atrizes mimetizam Sérgio Cardoso, como costuma ser a regra, por exemplo, nos musicais sobre grandes cantores. Até porque, como o teatro é a arte do efêmero, seriam escassas as referências para correr atrás de uma reconstituição fiel. Sérgio fez pouco cinema e as participações na televisão quase não foram preservadas. Só que, nem por isso, a história deixa de ser contada.

O jovem advogado que imaginava uma carreira diplomática e se transforma em ator por acaso, depois de uma conversa com Paschoal Carlos Magno (1906-1980), responsável pela montagem de Hamlet, aparece na peça. A sua chegada ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, endividado e tratado como um astro pelo empresário italiano Franco Zampari (1898-1966), surge com detalhes, assim, como o relacionamento com a atriz Nydia Licia (1926-2015), mãe de sua filha, Sylvia, e sócia na companhia que ergueu o Teatro Bela Vista, atual Sérgio Cardoso.

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Os acessos de estrelismo, as fragilidades emocionais e as dificuldades da carreira são mostradas sem que sejam adotadas qualquer convenção narrativa. Por fim, a morte precoce, aos 47 anos, no auge da popularidade televisiva, que o fez virar lenda, é retratada com um raro equilíbrio informativo e poético.

Como dramaturga, Rita Batata apropria-se da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), o primeiro impacto teatral do jovem espectador Sérgio e texto que ele viria a dirigir em 1958, como costura para a morte do homenageado. A cena funde diálogos das personagens Alaíde e Madame Clessi, como se fosse uma alucinação de Sérgio, para metaforizar a partida do ator e usa a Mulher de Véu, outra personagem da mesma peça, como simbologia para o sopro no coração que fragilizou a sua saúde.  Nesta parte, Lourenço interpreta Sérgio e Alaíde, Lilian é Madame Clessi e Bárbara faz a Mulher de Véu.

Rita Batata reluta em assumir que criou uma peça biográfica. Graças a essa convicção, ela se cercou de fragmentos de textos protagonizados pelo ator para explicar a sua trajetória profissional, um recurso semelhante ao usado em Não me Entrego, Não!, solo de Othon Bastos, com um pouco mais de didatismo. Além de Vestido de Noiva ou da obra de Shakespeare, o sexteto de Sérgios se desafia ao interpretar trechos de A Raposa e as Uvas, de Guilherme Figueiredo (1915-1997), Lampião, de Rachel de Queiroz (1910-2003), e Henrique IV, de Luigi Pirandello (1867-1936), além de citar Seis Personagens à Procura de um Autor, do mesmo Pirandello, o que dá uma noção do variado currículo do artista.

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Uma das cenas mais inspiradas é um longo bate-bola entre Sérgio e Nydia (aqui interpretados por Felipe Ramos e Bárbara Arakaki) que apresenta as diferenças de personalidades dos dois, indo do encanto da paixão até o desgaste que culminou na separação. Um era emoção, sonho, impulso, o outro, razão, realidade, estabilidade. A construção do texto foge da banalidade de mostrar discussões de casal e estabelece um jogo verbal que transmite a progressiva tensão entre marido e mulher.

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Seis Atores em Busca de Sérgio Cardoso é uma peça biográfica, é uma peça de vanguarda – se pensarmos a origem e o desenvolvimento do projeto como a mera celebração do centenário do artista – e é uma peça engajada com os discursos exigidos no teatro da atualidade sem deixar de desafiá-los. Acima de tudo é uma peça em que o espectador se vê diante de uma história apresentada por bons atores e atrizes, compreende tudo – ou quase – o que eles mostram e vai para casa satisfeito, sem pensar que faltou repertório para captar a mensagem.

O elenco apresenta um equilíbrio importante para o conceito coral, ainda que Bruno Lourenço se imponha com mais força nas representações de Sérgio Cardoso e Bárbara Arakaki seja mais lembrada como Nydia Lícia. Felipe Ramos se destaca como Paschoal Carlos Magno e Franco Zampari e Rafael Pimenta chama a atenção na pele do ator Sérgio Britto (1923-2011).

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Próximo aos integrantes de um balé, os intérpretes deslizam pelo palco em imagens que valorizam a encenação graças à preparação corporal e a direção de movimento de Luaa Gabanini e ao desenho de luz idealizado por Thiago Capella. Seis Personagens em Busca de Sérgio Cardoso oferece uma oportuna reflexão sobre o ofício teatral que estreita os limites entre o universo criativo dos artistas e os anseios dos espectadores, estas pessoas que, comumente, nada mais querem que assistir a um bom espetáculo e, neste caso, saem do teatro satisfeitas.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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