É muito difícil, no Brasil de hoje, discutir sobre as Leis de Incentivo à Cultura, tal o acúmulo de preconceitos que circundam esse tema… Minha perplexidade sobre isso aumentou à medida que, além de atuar no meio teatral, formei-me em Direito, tendo a oportunidade de estagiar em escritório de advocacia especializado nessa área. Já tentei abordar o assunto com pessoas que não trabalhavam na área cultural, mas, a falta de conhecimento impede que se chegue a conclusões minimamente embasadas.
As opiniões polarizadas e, por vezes, extremistas, não contribuem para uma discussão producente sobre as Leis de Incentivo criadas com a intenção de gerar cultura e beneficiar a todos nós. O que me parece, a partir das minhas tentativas frustradas de investigar o assunto, é que, não havendo como premissa a importância do investimento à cultura para um país e seu povo, não se pode, sequer, iniciar a conversa – melhor nem perder tempo.
Sonia Kavantan, socióloga e pedagoga formada pela USP, produtora cultural com mais de 30 anos de experiência, atua nas áreas educacional e da cultura, em produção, consultoria, marketing cultural e pesquisa.
A produtora foi uma das pioneiras em formar outros produtores e agentes culturais, ministrando cursos, palestras e workshops por todo o Brasil, desde 1995: “Fui contratada para explicar a Lei Sarney [primeira Lei de Incentivo à Cultura] para artistas e empresários – quase ninguém entendia como aquilo poderia funcionar. Entre as curiosidades da minha vida profissional, recordo de ter de explicar as funcionalidades da Lei para o grande Plínio Marcos…”
Para tentar entender um pouco mais sobre a temática, e o que devemos fazer para que os tabus envolvendo a Lei Rouanet e outras leis de incentivo à cultura sejam amenizados, convidei a produtora teatral – e expert no assunto – Sonia Kavantan para uma conversa.
O que são e quando surgiram as Leis de Incentivo Fiscal?
Sonia Kavantan: Começou há muito tempo, quando o Brasil saiu do dito Milagre Econômico e, então, faltava dinheiro para tudo neste país. Nessa época – até um pouco antes – surgiram inúmeras leis de incentivo fiscal. E o que é uma lei de incentivo fiscal, propriamente? Vamos supor que exista uma área geográfica/econômica que, se houver investimento, poderá progredir, isto é, gerar empregos, tributos – tornando-se algo relevante para a economia local e, consequentemente, para o país.
Uma empresa, para sair de um local em que há muitas indústrias e ir para uma região em que não há nenhuma, por exemplo, recebe incentivo fiscal: a empresa investe nessa mudança e, quando vende seu produto, em vez de pagar o imposto correspondente ao Governo, o valor desse imposto fica para a empresa, para que possa abater o investimento. Isto é, o Governo “abre mão” de receber um tributo futuro, para que alguém faça um investimento também em benefício da coletividade.
Como funcionam as referidas Leis tratando-se da área cultural?
O Governo Federal pensou em fazer exatamente a mesma coisa na área cultural, mas isso seria impossível: os realizadores de cultura, principalmente no final da década de 1980, não tinham dinheiro para fazer o investimento inicial e, posteriormente, com a venda de seus espetáculos, deixar de pagar o Governo. Até porque a cultura, nessa época, funcionava, praticamente, na informalidade. Ou seja, o modelo de incentivo fiscal usado em outras áreas econômicas, para a nossa [a cultura], não se aplicava.
Assim, o Governo buscou inspiração em leis já existentes, especialmente europeias: ao invés do incentivo fiscal ter apenas dois agentes (a empresa e o Governo), passa a ter três agentes: o Governo (que prescinde de receber o imposto), o profissional cultural (que realizará a produção do projeto), e uma empresa privada (que passa a investir no projeto aqueles valores que teria de recolher ao erário). Isto é, ao invés da empresa privada pagar o imposto para o Governo, ela direciona esse valor diretamente para um projeto cultural [o Estado deixa de intermediar o envio desse dinheiro para a cultura, sendo certo que teria de financiá-la de algum modo, em benefício da coletividade]. Isso acaba por gerar receita, novos empregos e, consequentemente, novos impostos, ao mesmo tempo fomentando a cultura.
Mas, para que isso seja possível, o “fazedor” de cultura precisa cadastrar/aprovar um projeto, por meio de editais – seja por uma Lei de Incentivo Municipal, Estadual ou Federal. Há uma série de regras que devem ser seguidas (exemplo: valor máximo do projeto, valor por categoria, valor exato de cada item necessário para a realização, por quanto tempo será feito etc.). Se aprovado, a produção vai ao mercado buscar esse dinheiro no setor privado. Importante dizer que, sim, é dinheiro público, pois se a empresa não direcionar esses recursos ao meu projeto, ela pagará o mesmo valor em impostos. Desde os anos 1980 existe esse procedimento, que foi sendo aprimorado ao longo do tempo, por seguidas leis com tal finalidade.
A primeira lei de incentivo fiscal foi Federal, a Lei Sarney, que foi substituída pela Lei de Incentivo Fiscal à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. Depois surgiram leis municipais, que geram descontos sobre IPTU ou ISS, e, também, leis estaduais – descontos sobre o ICMS.
Qual o interesse do agente/empresa privada em direcionar o valor de seu imposto para um projeto cultural?
Ele terá visibilidade: utiliza-se essa possibilidade legal como uma ação de marketing. Além disso, reclamam tanto os pagadores de impostos, que não se sabe para onde vai seu dinheiro, já que não se vê retorno correspondente… Agora, se a pessoa virar patrocinadora de um projeto cultural, ela não só escolherá em qual projeto quer investir, mas também poderá acompanhar o resultado.
É, inclusive, uma ação de cidadania – mas não há divulgação dessa possibilidade, nem por parte dos governos. Por falta de conhecimento, gerou-se a sensação de que os artistas estão se prevalecendo ilicitamente do dinheiro público… Além disso, a burocracia envolvendo o processo e a insegurança generalizada afastam os possíveis financiadores privados. Pensando no leitor da nossa matéria – como pessoa física ou jurídica – se ele tem um imposto a pagar, para ele é uma excelente oportunidade ser patrocinador!
Ao que se devem os tabus envolvendo a famigerada Lei Rouanet?
Esse diferencial, de existir esse terceiro agente no complexo do incentivo fiscal, gera muita dúvida. Raramente fica claro, para aqueles que não são da área – o grau de fiscalização e necessidade de comprovação de todos os passos referentes a este processo. Muitas vezes as pessoas ficam impressionadas com o que veem na mídia. Por exemplo: “Maria Bethânia consegue dois milhões de reais da Lei Rouanet”. Não é bem assim… na verdade, um projeto – em que ela participará e que foi minuciosamente analisado, incluindo a detida avaliação do orçamento – foi contemplado com esse valor. E, hoje, existe um teto de quinhentos mil reais para cada projeto. Não se entende que este valor será direcionado a todas as ações e a todas as pessoas que trabalham nesse projeto – muitos fornecedores de um projeto cultural nem são da área artística, ainda mais quando os projetos envolvem viagens para outros estados, por exemplo.
A falta de conhecimento faz parecer que o artista é quem vai ganhar todo aquele valor, o que não corresponde à realidade. Além disso, existe sempre uma divulgação midiática daquilo que não deu certo, de produtores que, de fato, lesaram o dinheiro público – existem escândalos em todas as áreas econômicas e pessoas não sérias também…, mas justamente, por não ser o padrão, é que vira notícia. O que quero dizer é que muitos projetos sérios e dignos, são frutos de leis como essas. No mais, existe um preconceito de que o artista não lida bem com dinheiro… isso é um equívoco que permeia gerações – hoje em dia, artistas também são empresários. Nós produzimos algo que está no mundo das ideias, é um valor subjetivo. Então, a todo momento, estamos nos perguntando: como transformo isso em um produto? Quanto cobro por ele? Como vivo disso?
A classe artística é refém das Leis de Incentivo?
As Leis alteraram o processo de produção, em toda a sua cadeia. As artes cênicas, de forma geral, foram mais impactadas por isso… com a possibilidade de remunerar, através do patrocínio, toda a cadeia fornecedora, os preços subiram muito. Por exemplo, o aluguel dos teatros subiu vertiginosamente – antes pagava-se única e exclusivamente um percentual de bilheteria; hoje há um valor que, se não for atingido pela bilheteria, é preciso pagar posteriormente. Tanto é que, o ator que está lá todos os dias, às vezes, é o que menos será remunerado nesse processo. Outro ponto é que, como as leis de incentivo envolvem dinheiro público, existe uma exigência de contrapartida social como, por exemplo, gratuidade de ingressos. Isso achatou a bilheteria final dos projetos. O resultado financeiro dos grandes shows, mesmo com a cota de ingressos gratuitos, não é afetado por isso. Mas, em um espetáculo de teatro, essa consequência torna-se mais evidente.
Em São Paulo, por exemplo, há uma quantidade imensa de espetáculos em cartaz – vários deles gratuitos por se tratar do “retorno” da Lei. Assim, o público de teatro ficou “mal-acostumado”. Não é que a Lei atrapalhe as produções, muito pelo contrário (!), mas ela mudou a forma de produção. E como não conseguimos expandir mais o número de ingressos – pelo número de lugares limitados dos teatros – sentimos mais esses efeitos que outras expressões artísticas. Outra questão é que, todos os profissionais das artes, perante o mercado de patrocínios, se tornaram concorrentes. Se há uma produção artesanal, mais experimental, por exemplo, sem grandes nomes – não se tratando de qualidade artística, mas de reconhecimento público – é mais difícil captar dinheiro.
Ou seja, o mecanismo existe para todos, mas o sucesso da captação destes recursos perante as empresas, é que vai determinar se você poderá usar a Lei ou não [essa é a razão pela qual artistas reconhecidos captam mais recursos]. E, como todos os valores subiram, mesmo aqueles que não conseguem captar recursos, deparam-se com este mercado de preços mais altos. Até o surgimento das leis, o modo de produção teatral era realizado, praticamente, de duas formas: ou a produção de determinado espetáculo era capitaneada por um artista famoso (Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Tônia Carrero, Nicette Bruno e Paulo Goulart trabalhavam dessa forma) e que, normalmente, conseguia um empréstimo bancário que seria pago posteriormente, a partir do dinheiro arrecadado pela bilheteria; ou, então, todo mundo se organizava em cooperativa – no sentido literal da palavra – e arcava com os riscos e ganhos da produção. Esses modos de produção, atualmente, praticamente deixaram de existir.
Hoje existe um número imenso de proponências de projetos, mas não há recursos para tantas realizações artísticas, inclusive pelo descrédito das Leis perante a opinião pública – o que é uma bobagem – dificuldade que se aprimora pelo não crescimento da infraestrutura pública relacionada à cultura, porque a partir do momento que os governos entenderam que o dinheiro virá da iniciativa privada, deixaram de fazer investimentos básicos nessa área. Faltam políticas públicas fortes que deem continuidade à área cultural. Por exemplo, desde que sou produtora – e isso já faz mais de 30 anos – não se viu crescer o número de teatros públicos em São Paulo.
Por fim, o valor dos ingressos de teatro, ao longo dos anos, não subiu como no resto da economia. Antigamente, para termos uma noção, os ingressos de teatro eram cinco vezes mais caros que os ingressos de cinema. Hoje são, em sua maioria, mais baratos. Mas um filme não está sendo exibido unicamente naquela sala, como no teatro, mas em inúmeras salas de cinema pelo mundo todo. Indo além, ainda somos obrigados a cobrar a meia entrada! O teatro é a única ceara em que, tratando-se da meia entrada, o Governo não faz subsídio. Por exemplo, o estudante paga meio transporte público, mas o Governo repõe o subsídio para as empresas – não é a empresa que arca com este valor, como no nosso caso.
Hoje tem-se uma cidade muito mais violenta, uma falta de dinheiro generalizada, uma vida muito mais corrida que antigamente. Se um espectador ficou preso no trânsito e não conseguiu chegar a uma sessão de teatro, ele perdeu o programa. Não é como no cinema, em que o filme começara depois de um tempo em outra sala. Por tudo nós culpamos a Lei, mas ela é só um dos elementos que alterou o modo de produção. Isto é, a falta de público não é derivada da Lei de Incentivo – não é como dizem: “o dinheiro já está ganho”.
O que devemos saber sobre as novas Leis de Incentivo à Cultura: Aldir Blanc e Paulo Gustavo?
A Lei Aldir Blanc foi o que segurou grande parte de nossa área durante a pandemia. Mas é importante explicar que, no caso dessas duas leis, aí, sim, é dinheiro público direto. É preciso apresentar uma proposta, que, por sua vez, siga todas as regras do edital publicado. Apesar da verba ser grande, ela é “picotada” para inúmeros projetos, exatamente para gerar emprego para todos – este é o objetivo. O que tivemos na nossa área, nesses últimos dois anos, foi uma paralisação generalizada, com um adicional de dificuldade: os realizadores culturais – todos que trabalham para essa indústria cultural, não só o artista – em sua maioria, não têm reserva financeira.
Além disso, o profissional que se especializou, unicamente, em determinada função dentro da área cultural, não pôde trabalhar. A Lei Aldir Blanc possibilitou, não só ao artista poder fazer uma pequena produção, mas que esses fornecedores da área cultural também pudessem ter acesso a tais recursos. Essas leis irão permitir um novo fortalecimento da área – são mecanismos de políticas públicas com esse objetivo.
Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.