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Foto: Ronaldo Gutierrez
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“Agnes de Deus” surpreende com encenação enigmática que contrapõe as aflições de três perfis femininos

Sob a direção de Murillo Basso, a montagem, em cartaz no Teatro Aliança Francesa, lança debate sobre como cada mulher lida com a possibilidade da maternidade

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Na letra da canção Esotérico (1976), o compositor Gilberto Gil escreveu que “mistérios sempre há de pintar por aí”. Este verso pode mapear a encenação de Agnes de Deus, assinada pelo diretor Murillo Basso, em cartaz no Teatro Aliança Francesa, em São Paulo. A peça, publicada pelo dramaturgo americano John Pielmeier em 1979 e levada às telas seis anos depois pelo cineasta canadense Norman Jewison, promove um embate entre religiosidade e ciência sem decifrar nenhuma questão e, na proposta de Basso, os enigmas reforçados envolvem o espectador.

Na trama, a psiquiatra forense Martha (interpretada por Clara Carvalho) visita um convento onde um recém-nascido foi encontrado morto, enforcado no cordão umbilical. A principal suspeita do crime é a própria mãe, a jovem freira Agnes (representada por Gabriela Westphal), e a postura da madre superiora, a Irmã Miriam Ruth (papel de Mariana Muniz), leva a desviar o foco do assassinato. A religiosa insinua que a garota foi tocada por Deus e a concepção é um milagre, argumento desprezado pela mente pragmática de Martha.

Embalada como um thriller psicológico, a montagem vai além dos limites do suspense para entender quem é a responsável pela morte do bebê ou de que maneira a religiosa engravidou. O foco da peça recai sobre o universo feminino através de três mulheres distintas e as escolhas de cada uma delas em diferentes etapas da vida, traçando um painel sobre a culpa na sociedade.

Martha viveu uma grande paixão na juventude que resultou em uma gravidez indesejada. O aborto foi a solução óbvia e, ao longo dos anos, ela canalizou sua energia na medicina, tornando-se uma profissional racional e pouco confortável diante de ideias que abalem suas convicções. Miriam Ruth, surpreendentemente, vestiu o hábito na maturidade. Foi casada por 23 anos, colocou no mundo duas filhas, com quem não mantém qualquer tipo de relação, e, como resposta à reconhecida falta de vocação maternal, encontrou na austeridade da religião o conforto para seguir os dias com um mínimo de paz.

Para Agnes, o convento apareceu como salvação aos 17 anos, mas as feridas da infância e da adolescência são tantas que desmontam a sua esperança inicial. Ela cresceu em um meio disfuncional e viveu todas as violências possíveis de uma mãe abusiva. Nada mais natural que desenvolvesse pânico à ideia de maternidade. Agora, aos 21 anos, Agnes se viu com um bebê nos braços depois de ter camuflado os nove meses de gestação de todos que convivem ao seu redor. Ela teria descoberto o prazer proibido com um homem, foi vítima de um estupro ou, conforme prega Miriam Ruth, seria a eleita do milagre divino? Ninguém sabe e, aos poucos, esse mistério deixa de ter importância. Fica no ar um debate sem resposta sobre como cada mulher lida com a possibilidade da maternidade – já que todas ali estiveram diante dessa questão – e administra a culpa pelas decisões tomadas, seja o aborto, o abandono ou o infanticídio.

A encenação tira a trama do convento, contrastando com o realismo visto no cinema em filme protagonizado pelas atrizes Jane Fonda, Anne Bancroft e Meg Tilly. O cenário de Mira Andrade apresenta uma estrutura de ferro envolta em cortinas que, aos poucos, são abertas pelas próprias intérpretes como se fossem véus que caíssem. Pode ser o próprio consultório de Martha ou um tribunal de justiça, mas também um não lugar do inconsciente da psiquiatra, que narra ao espectador o episódio vivido com as duas religiosas, de quem ela jamais recebeu outras notícias.

A iluminação desenhada por Aline Santini reforça a aura enigmática, principalmente no começo da peça, quando, com a estrutura ainda forrada pelas cortinas, muitas vezes se enxerga apenas as silhuetas das artistas. Mas elemento fundamental para reforçar esse mistério e o não realismo adotado pela direção é a provocativa movimentação que explora os corpos do trio de protagonistas, especialmente a de Mariana Muniz. São coreografias marcadas em que elas se movem, dançam e até rastejam pelo chão do palco.

Em uma das cenas mais representativas, Martha interroga a sempre evasiva Irmã Miriam Ruth e pergunta “por que a voz de Agnes é tão importante para você?”. A resposta da religiosa não aparece através de palavras, mas de um solo coreográfico que Mariana vinha gradativamente desenhando minutos antes em gestos com as mãos que se assume como um balé de cerca de três minutos apoiado pela trilha sonora composta por Morris. Essa imagem é um dos símbolos da assinatura de Murillo Basso, diretor de 32 anos, que ganha em Agnes de Deus a chance de firmar uma identidade como realizador.

Parceiro constante como assistente de Yara de Novaes, Basso assumiu a titularidade da direção devido ao acúmulo de compromissos assumidos pela profissional no começo do processo que a impossibilitaram de comandar os ensaios. Yara aparece nos créditos como codiretora. Formado pela Escola de Arte Dramática (EAD) e um dos fundadores do grupo Teatro do Osso, Basso estudou dança em Berlim por um ano e meio e desenvolve trabalho em conjunto com a bailarina polonesa Anita Twarowska. A dupla criou um projeto coreográfico à distância no isolamento pandêmico. Logo, traz, além do sangue novo, referências arejadas e contemporâneas que tiram a peça de um lugar convencional.

Diante destas opções, Agnes de Deus é um espetáculo que fala da mulher e da sua relação com o corpo – o que amplia os significados das leituras mais óbvias do texto. Não se trata apenas de uma montagem em torno do assassinato de um bebê ou do suspense sobre a gravidez de uma freira. Também ultrapassa os limites do confronto entre religião e medicina e mesmo da discussão relativa ao aborto, que, ainda em 2023, renderia polêmicas e sustentaria o interesse do público. Basso, com a energia da juventude, constrói uma peça que foge dos debates previsíveis e mergulha nos tais mistérios que surgem ao longo de quase duas horas e, provavelmente, não serão decifrados.

Para alcançar essa credibilidade, o diretor conta com uma trinca de atrizes capaz de sedimentar o seu trabalho. Intérprete de rara sensibilidade, Clara Carvalho costuma equilibrar a técnica e a emoção. A personagem Martha exige uma frieza maior e raros são os momentos mais sentimentais, como o que ela narra a perda prematura da irmã no passado, delicadamente explorado pela artista.

Mariana Muniz, uma atriz que sempre chama muita atenção por seu expressivo trabalho corporal, não à toa é uma bailarina, surpreende pela dureza impressa na Irmã Miriam Ruth na maioria dos momentos. Causa curiosidade também as quebras dessa rigidez, tanto dela quanto de Clara, em cenas que assumem uma coloquialidade a princípio estranha à encenação, como aquela em que as duas se sentam na beira do palco e fumam juntas um cigarro. O que, em um primeiro momento, parece uma ruptura da proposta, logo ganha unidade por estabelecer uma sororidade entre as personagens oponentes.

Idealizadora do projeto, junto do produtor Ariell Cannal, Gabriela Westphal, de 30 anos, na pele de Agnes, se junta a uma representatividade semelhante a de Murillo Basso: a de uma geração que reverencia os ídolos, mas também deseja com urgência ocupar seu espaço para não ficar para trás. As experientes Clara e Mariana oferecem segurança aos dois na linha de frente do elenco – mesmo que as três personagens tenham pesos semelhantes. Gabriela já foi dirigida por Clara na comédia Escola de Mulheres, de Molière, e dividiu o palco com as duas em O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov, em encenação de Eduardo Tolentino de Araujo. Agora, é ela quem as convida para compartilhar o brilho e oferece um desafio para as colegas veteranas, principalmente diante das propostas da direção de Basso.

Na saída do teatro, o mistério permanece quanto à forma de concepção do bebê – e o espectador nem deve se importar com isso, afinal, todo o espetáculo se encaminha para deixar no ar mais perguntas. Se Agnes de Deus se firma como uma grata surpresa da reta final desta temporada, a ida até o Teatro Aliança Francesa não deixa de ser um melancólico adeus.

Com a sede da instituição de ensino da Rua General Jardim, na Vila Buarque, posta à venda, foi anunciado que o teatro fechará as portas em dezembro depois de quase seis décadas de atividades e uma programação de ótimo nível. Como “mistérios sempre há de pintar por aí”, quem sabe um milagre não acontece e a Aliança Francesa e seu teatro se salvem. Isto é bem pouco provável, claro, então resta o consolo de Agnes de Deus promover uma despedida à altura da história dessa sala tão emblemática.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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