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As tais das “camadas”!

Coluna Por Chico Carvalho

As tais das “camadas”. Reparem! Quando o ator quer valorizar a si mesmo e a personagem que representa vem sempre o argumento das “camadas”: a personagem tem muitas “camadas”, dizem… e com isso querem dizer que a personagem é complexa porque é dotada de “camadas”, e somadas às “camadas” da personagem aparece de carona a “camada” dos “atores, porque estes também não poderiam deixar de ostentar complexidade – uma ode à complexidade! Um crime ser raso, translúcido, transparente…

Uma sobreposição de “camadas” é o resultado de tantas “camadas” empilhadas e escaladas… Ainda se fizessem essa defesa das tais das “camadas” na televisão ou no cinema onde o que não faltam são justamente as “camadas” da câmera, da lente da câmera, da tela do cinema e da tela da televisão…, aí sim eu poderia entender a tal da argumentação em “camadas”…; mas não! Falam das “camadas” no Teatro, justamente o lugar cuja qualidade própria é não haver desgrama de “camada” nenhuma, mistério nenhum, complexidade nenhuma. Suba lá no palco e diga a desgraça do texto com a plenitude dos pulmões e veja o que acontece sem recorrer às tais das “camadas”, ora essa! Mas não, falou em teatro e parece que as “camadas” começam a eclodir feito uma cordilheira dos Andes.

Querem supervalorizar o teatro e não desconfiam de que ao proceder assim o que fazem é torná-lo um exercício de insuportável vaidade autorreferente. Quantas vezes não escutamos por aí que o Teatro é o lugar onde se é possível mergulhar fundo, onde o ator é convidado a reconectar consigo próprio, onde todas as demandas desse mundão chinfrim se rendem ao estonteante poço misterioso do abismo teatral? Ora essa… Eu sou adepto da filosofia do pão com ovo: teatro é um lugar como qualquer outro, e que – justamente por ser um lugar comum – tem as suas especificidades e suas demandas próprias, um lugar, enfim, onde se trabalha, onde se precisa de atores de teatro para que algo aconteça em seus domínios, mais ou menos como dizer que numa marcenaria espera-se que um marceneiro tome as rédeas do serviço. Essa entoação abstrata das “camadas” se justapondo me parece muito mais um discurso de aventureiros do que de trabalhadores, de fato, do teatro.

E ainda há o ponto de vista das personagens! Será que não suspeitam de que as grandes personagens só são grandes porque não carregam bendita de “camada” nenhuma? São o que são, sem “camadas”. E os bons atores – os verdadeiramente bons, reparem! – trabalham numa medida explicitamente frontal, sem “camadas”, sem esse treco de “perspectivas múltiplas” a serem consideradas, investigadas, vividas…, e isso, ao contrário do que pensam, não reduz nada a uma pobreza de substância – o inverso disso! Ao invés de mergulhar num fundo infinito de pretensas “camadas complexas”, os grandes atores e as grandes personagens são exímios surfistas, surfam que é uma beleza na agilidade que o palco do teatro exige. Esses sim – os surfistas – são conscientes de um princípio básico que é o da brincadeira. Ninguém brinca afundando-se em “camadas”. A brincadeira é rasa mesmo, desavergonhadamente periférica, nada de arqueologias envolvidas.

Pegue um único personagem de Shakespeare, qualquer um, e o convide a chafurdar em “camadas”… aposto meu rim esquerdo de que ele sairá correndo e o deixará a ver navios, para que você se entretenha sozinho num glorioso solilóquio com suas próprias “camadas” imersivas, um estupendo interlúdio do ego dilatado.

Viva o Teatro… e para o inferno com as “camadas”!

***

Falei mal das “camadas”. Agora falo bem! Um viva às “camadas”!

Vontade de ser dono de um teatrinho. Com plateia pequena e um mezanino – porque o meu teatrinho seria pequenino mas empoleirado, com vistas de cima também. É pequenino, mas nada de intimidades obscenas – para o bem de quem assiste a tudo, e para a satisfação de quem pode falar debaixo do refletor sem a sensação de estar sendo enquadrado por curiosidades excessivas. Palco com cortina! Nada dessa coisa escancarada de assassinar o mistério em benefício do despojamento, do depoimento, da luz fria que atravessa a tudo. Nada de desnudar as coisas! Quero tudo com milhares de camadas para descascar. Teatrinho-cebola, será o meu! Meu teatrinho seria todo introvertido, tímido, arrumadinho, quase uma caixinha de música cuja bailarina só sai dançando se alguém lhe der corda.

Cobraria ingressos baratos. Um pipoqueiro na calçada. Um letreiro luminoso com o nome da peça em cartaz. O meu teatrinho não seria a casa nem a sede de ninguém. Pavor de pensar em chamar o meu teatrinho de casa. É um teatrinho exilado, e só. É meu, mas também não é de ninguém. Um teatrinho com plateia, mezanino, palco com cortina, cortina de veludo vermelho erguida e baixada à francesa. Pipoqueiro na rua. E quando tudo acabasse eu gostaria de ir embora por último, apagar tudo, trancar tudo, deixar tudo vazio. Aliás, a depender da demanda, é preferível que permanecesse assim: sempre vazio, sem peças em cartaz, sem público nenhum. Eu só iria lá no teatrinho para bisbilhotar os fantasmas todos, conferir se estavam bem servidos de silêncio e coisa nenhuma que atrapalhasse a poeira assombrada de um tempo coagulado. No meu teatrinho funcionaria assim: os protagonistas são as almas penadas. E o pipoqueiro lá fora, fazendo pipocas.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Chico Carvalho

Chico Carvalho

Ator, radialista e apresentador da Rádio Cultura FM de São Paulo. Formado em Artes Cênicas pela Unicamp e em Comunicação Social - Rádio e TV - pela Fundação Cásper Líbero. Mestre e doutor pelo Departamento de Artes da Unicamp.

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