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Christiane Jatahy trata em “A Hora do Lobo” da própria aceitação na Europa, política, imigração e acolhimento da classe artística

A peça propõe um diálogo com o filme Dogville através de um elenco que recebe uma brasileira na tentativa de transformar o fim da história do cineasta Lars von Trier

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Para a encenadora e dramaturga Christiane Jatahy, o teatro é um lugar de proteção e acolhimento. É assim que a artista carioca, de 55 anos, se sente desde meados da década de 2010, quando passou a trabalhar na Europa e, há sete anos, se radicou em Paris. Não à toa um teatro é o cenário escolhido para desenvolver a ação de A Hora do Lobo, a primeira parte da Trilogia do Horror, que pode ser vista no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, em São Paulo. A tríade reflete sobre a ascensão da extrema direita em vários países ecoada no Brasil com a vitória do ex-presidente Jair Bolsonaro, na eleição de 2018.

Na criação de A Hora do Lobo, que ganhou os palcos no Festival de Avignon, na França, em 2021, Jatahy travou um diálogo com o filme Dogville, lançado pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier em 2003. Nas telas, a misteriosa Grace (papel de Nicole Kidman), depois de ser perseguida por gangsters, passa a viver em uma pequena cidade onde imagina que ficará segura. A ilusão de que lá terá a chance de recomeçar uma vida é desmontada pelo clima hostil estabelecido e as explorações e violências praticadas por quase todos os ditos cidadãos de bem que surgem a sua volta.

A peça, falada em português e francês, foi criada na Comédie de Genève, na Suíça, e conta com nove atores – cinco franceses, três suíços e dois brasileiros. O trabalho dá sequência à pesquisa que consagrou Jatahy, o diálogo entre a ação teatral e a cinematográfica, com a filmagem e a edição simultânea de quase tudo o que acontece no palco.  Na releitura de Dogville, o espaço capaz de oferecer segurança é um teatro, e Grace se chama Graça (interpretada por Julia Bernat), uma brasileira, que, entre 2020 e 2021, foge do país por conta do bolsonarismo.

É Tom (vivido pelo ator francês Matthieu Sampeur) quem acolhe Graça e a propõe o isolamento de uma experiência em uma casa de espetáculos com um grupo de artistas. Junto ao seu elenco, ele cria uma versão do filme Dogville em que a mudança do final da história significa uma tomada de consciência do coletivo. Se no longa, Grace é cada vez mais agredida a ponto de promover uma chacina no desfecho, a proposta é que, nesta adaptação, apoiada pelo acolhimento, a forasteira seja incorporada a eles. Só que, aos poucos, fica claro como é difícil mudar os rumos de um imaginário já estruturado.

Diante da eleição de Bolsonaro, Jatahy só carregava uma interrogação na cabeça. “Como podemos repetir uma história tão recente depois de tantos anos de ditadura militar e por que caímos neste abismo novamente?”, perguntava-se. Em 2020, a diretora passou janeiro e fevereiro no Brasil, embarcou para a França nos primeiros dias de março para cumprir uma agenda, mas, diante do agravamento da pandemia, entendeu que precisava regressar ao seu país. Tomou o último avião saído de Paris e ficou no Rio de Janeiro até o fim de julho. “Eu peguei todo o começo do horror no Brasil, bati panela, chorei, vi o salto do número de mortes, por isso o meu trabalho é sempre sobre voltar”, afirma ela, referindo-se ao lugar de fala que lhe é de direito.

Não tem como negar que Jatahy, assim como Graça, é uma imigrante em uma terra estrangeira. “Eu fui muito bem recebida, tenho, claro, o sofrimento da distância, mas sempre existe a possibilidade de voltar, a Graça não”, afirma. Em 2022, a encenadora recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra, prêmio inédito para um brasileiro e, hoje, seu prestígio é referendado como artista associada do Odéon-Théâtre e do Le Centquatre, em Paris, do suíço Schauspielhaus Zürich e do italiano Piccolo Teatro de Milano, entre outros.

A Trilogia do Horror é composta ainda das montagens Antes que o Céu Caia, que mistura a peça Macbeth, de Shakespeare, e o livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa, e Depois do Silêncio, fusão do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, e do documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, que viajam pela Europa há quase dois anos. Em março de 2024, Jatahy estreia uma versão feminista de Hamlet, de Shakespeare, no Odéon-Théâtre. Desta vez, ela se apropria da tragédia do príncipe da Dinamarca para propor uma inversão de gênero, dando voz a uma princesa em conflito com o fantasma do pai, a mãe, e Ofélia, sua amada.

Se Jatahy foi tão bem aceita nos teatros europeus, por que não sonhar que a Graça de A Hora do Lobo teria um destino semelhante? Só que, aos poucos, cada um vai se transformando no lobo do próprio homem, a ponto de ela ser ameaçada até por uma criança. A protagonista chega disposta a não criar problemas, reforçando a condição subserviente comum aos estranhos no ninho. Começa a trabalhar na loja da exigente Virginie (a atriz Véronique Alain), etiquetando e zelando pelos bonecos de porcelana da vitrine que se encontram ali sem o interesse dos compradores. A população do lugarejo – ou o elenco da companhia de teatro – começa a questionar a conveniência de colocar uma forasteira entre eles e uma votação se estabelece para decidir sobre a permanência ou expulsão.

Foto: Leekyung Kim

A dramaturgia de Jatahy espelha as mudanças de reações dos personagens sobre Graça em três pilares. No começo da peça, na sequência da votação, a permanência da protagonista é celebrada com uma festa com direitos a bebidas, música e dança. Graça canta I Will Survive, o sucesso disco de Gloria Gaynor, em uma brecha de confiança de que poderá sobreviver. A chapa esquenta quando uma fake news começa a circular pela internet, possivelmente plantada por um dos que estão ali. A brasileira teria deixado o seu país por associação a criminosos – e a desconfiança assombra de vez a cabeça de quase todos. Por fim, Graça é abusada sexualmente por Charles (representado por Valerio Scamuffa) e rejeitada entre as mulheres, que a enxergam como um perigo perto de seus maridos.

Será possível mesmo mudar o desfecho dessa história? Mesmo que o Dogville de Lars von Trier seja, a princípio, uma ficção e A Hora do Lobo de Jatahy também, as ações já se impuseram com excesso de força. “Quando o fascismo fica real, não tem mais personagem, não tem mais o teatro, só o espanto”, diz Julia Bernat, perto do final. Até o último minuto, Graça se sente violentada, explorada, como muitos que vivem fora de sua terra – seja em serviços subalternos ou mesmo em trabalhos prestigiados quando são alvos de piadas que insistem em colocá-los na condição de invasores.

A questão da imigração pode ser analisada de diferentes formas em A Hora do Lobo. A mais óbvia vem daquela que envolve uma diretora brasileira, cercada por alguns profissionais conterrâneos, que ocupa espaço destacado em um continente que lá atrás colonizou o seu país. Em um olhar aprofundado, o espetáculo lança uma provocação sobre o ambiente teatral e discute até que ponto a classe artística é tão acolhedora com aqueles que chegam sem grandes referências aos seus elencos. O teatro, uma dita arte coletiva, comumente contradiz essa máxima se tornando território de vaidades, abusos de autoridades e disputas mesquinhas. Afinal, Graça é uma estranha em meio a artistas que se conhecem e estão acostumados com o jeito de cada um desenvolver seus papéis. Roubaria ela a cena?

A apropriação da linguagem audiovisual no palco, base da pesquisa de Jatahy, é outro polo capaz de gerar atrito nas conservadoras estruturas teatrais. Se a partir da década de 1990, as projeções de vídeos começaram a fazer parte de muitas encenações pelo mundo afora, a proposta da diretora brasileira é bem diferente disto, não confunda e, por isso, ela chama tanta atenção. O espetáculo Corte Seco, de 2010, contava com câmeras no palco e até do lado de fora do teatro em um jogo de interação com os atores e o que poderia acontecer na rua. Em 2011, a ideia da encenadora ficou mais clara em Julia, releitura da peça Senhorita Júlia, do sueco August Strindberg, em que se explicitava a fusão de teatro ao vivo, filmado e captação simultânea durante a apresentação. Exemplar muito bem-sucedido foi E Se Elas Fossem para Moscou? (2014), diálogo com outro clássico, As Três Irmãs, do russo Anton Tchekhov, que usava três câmeras para a realização de um filme ao vivo que, editado, era exibido também simultaneamente.

Toda essa técnica chega ao espetáculo A Hora do Lobo aperfeiçoada no trabalho do diretor de cinema e fotografia Paulo Camacho, parceiro constante de Jatahy. A mesa de edição é parte do cenário, e câmeras passeiam pela cena, nas mãos dos atores ou apoiadas em objetos cênicos. Em poucos minutos, tudo está perfeitamente incorporado à ação teatral e, aos olhos do espectador, que, depois de se adaptar à novidade, percebe um novo desafio. É curioso entrar na tentativa de decifrar o que é transmissão em tempo real e o que surge como material filmado? Algumas vezes, o próprio elenco brinca com isso e estimula a inquietação nas pessoas.

Uma vantagem dos trabalhos de Jatahy é que, como ela parte de uma obra conhecida, o espectador tem o conforto de não precisar se preocupar com a compreensão da trama. Não que seja obrigatório, mas, muitas vezes, o público carrega em sua memória referências dos objetos de inspiração, sejam eles Dogville, As Três Irmãs ou o futuro Hamlet, e, diante desta bagagem, o peso do exigente teatro ameniza para abrir espaço ao prazer do cinema. Então, mesmo que a história não seja nada leve, o público mergulha em uma experiência em que o importante é a visão de Jatahy sobre aquela obra e não o resultado da própria obra em si.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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