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Foto: Ronaldo Gutierrez
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“Clara Nunes – A Tal Guerreira” é um musical com dramaturgia e direção sólidas que apresenta a cantora como personagem de grande potencial

Ainda desconhecida, Badu Morais comprova domínio vocal e equilíbrio dramático ao substituir Vanessa da Mata, a titular do papel, no espetáculo criado por Jorge Farjalla

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Caro leitor e cara leitora, aqui começa uma crítica que, em um primeiro momento, não deveria ter sido escrita. No dia 1º de setembro, domingo, às 20h, o Teatro Bravos, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, registrava lotação esgotada para o musical Clara Nunes – A Tal Guerreira, dirigido por Jorge Farjalla.

Por volta de trinta minutos antes do começo da sessão, o público que aguardava a abertura da sala recebeu o aviso que a cantora Vanessa da Mata, intérprete da personagem-título e chamariz para boa parte dos espectadores, acometida por uma sinusite, não faria a apresentação, a segunda do dia. Na primeira, às 16h, Vanessa deu conta, mas foi aconselhada a não repetir o esforço porque possivelmente perderia a voz no meio da peça.

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A atriz e cantora Badu Morais foi anunciada como substituta de Vanessa e, entre a frustração, a surpresa e a decepção, os espectadores entraram pisando desconfiados nos carpetes do Teatro Bravos. Stand-in ou cover são termos que identificam atores ou atrizes ensaiados, supostamente com o mesmo afinco, pela direção para cobrir o colega titular em alguma emergência – o que se concretizou naquela noite.

Muito comum no universo dos musicais no exterior, a alternância costuma ser rejeitada no cenário nacional, muitas vezes é exigida a devolução do valor do ingresso ou, pelo menos, é oferecida pela produção essa opção.

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O que se viu, entretanto, foi o seguinte: Vanessa da Mata pode estar ótima na representação da cantora Clara Nunes (1942-1983), deve ser verdade, mas Badu Morais se mostrou totalmente preparada e apresentou um desempenho capaz de lhe colocar no patamar das protagonistas. Com uma voz potente e comprovado talento dramático, ela quebrou a desconfiança dos espectadores, arrancando aplausos em cena aberta com uma equilibrada dose de emoção e técnica.

Badu tem 34 anos, nasceu em Natal, no Rio Grande do Norte, e vive desde 2019 em São Paulo. Chegou por aqui como integrante do elenco do musical As Cangaceiras, Guerreiras do Sertão, escrito por Newton Moreno e dirigido por Sergio Módena, e, em seguida, participou dos filmes Céu de Agosto (2021), A Mãe (2022) e Agreste (2023), adaptação para as telas da peça que consagrou Moreno, ainda inédita.

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Seu trabalho de maior repercussão no teatro foi como a Mulher na Janela de outro musical, Morte e Vida Severina, encenação de Elias Andreato para o poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), em 2022 e, no começo deste ano, ela trabalhou em O Ninho, Um Recado de Raiz, outro texto de Newton Moreno. A artista ainda acaba de estrear como diretora de cinema no curta No Batente, que, em breve, percorrerá o circuito de festivais.

Tais credenciais cacifaram Badu para cobrir Vanessa em Clara Nunes – A Tal Guerreira. A produção, inclusive, anunciou previamente as sessões anteriores em que ela foi titular. Logo, em 1º de setembro, não foi a primeira vez de Badu como Clara.

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Mas como fazer a crítica de uma montagem em que a estrela – e estamos falando de uma famosa cantora de música popular – não participou? Existe uma questão ética que precisa ser avaliada. Um ator ou uma atriz protagonista pode mudar completamente o espetáculo se a encenação e a dramaturgia não forem suficientemente sólidas e independentes da presença dele. Claro que Vanessa deve imprimir personalidade a sua Clara Nunes, mas Badu, como já foi dito, não fica atrás. Mais que Vanessa e Badu, no entanto, Clara Nunes – A Tal Guerreira é um grande trabalho de dramaturgia e direção – e, por isso, além de achar justo jogar um pouco de luz em cima do nome de Badu, esta crítica foi escrita.

Nas últimas duas décadas, musicais baseados em biografias de grandes nomes da música brasileira se multiplicaram pelos palcos. Já tivemos Elis Regina (1945-1982), Tim Maia (1942-1998), Cartola (1908-1980), Cássia Eller (1962-2001), Cazuza (1958-1990) e tantos, tantos outros. O público adora, se sente em um show ou melhor, na maioria das vezes, em algo próximo de um show que ele jamais terá a oportunidade de ver. Um grande exemplo é Rita Lee – Uma Autobiografia Musical, que lota desde o fim de abril o Teatro Porto com uma antecedência que há muitos anos não se via na cena paulistana. O que temos ali é uma interpretação impressionante de Mel Lisboa como a roqueira e muito, muito pouco além disto. Graças à atriz, a plateia se sente diante de Rita Lee (1947-2023) e se delicia diante do show que não é mais possível de se assistir.

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Com dramaturgia de André Magalhães e Jorge Farjalla, Clara Nunes – A Tal Guerreira não é uma montagem biográfica e, muito menos, um show, embora a direção musical e os arranjos de Fernanda Maia entreguem com brilhantismo quase trinta canções do repertório da cantora mineira – muitas delas entoadas junto pelo público entusiasmado. Sabiá abre a peça. Canto das Três Raças, Você Passa Eu Acho Graça e Tristeza Pé no Chão aparecem lá. Com Feira de Mangaio e Portela na Avenida todo mundo dança. É teatro de verdade o tempo todo. Nenhuma música está ali por acaso ou para agradar a plateia, todas têm uma função dentro da dramaturgia.

A narrativa segue um ritual, um caminho religioso, guiado pelas entidades – para quem não sabe, Clara era umbandista, filha de Ogum com Iansã e fundiu a crença a sua arte –, repleto de signos, tanto espirituais como do universo do samba. Orixás como Èsù, Nanã, Iansã e Ogum, representados respectivamente por Reynaldo Machado, Ananza Macedo, Leilane Teles e Gui Leal, estão no palco. O cenário, criado por Marco Lima, remete a barracões e a carros alegóricos que atravessam a avenida em desfiles de escolas de samba. A Portela era uma das paixões de Clara.

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Umas das grandes sacadas é colocar a atriz Bibi Ferreira (1922-2019), amiga de Clara e mentora de sua postura cênica desde que a dirigiu no show Brasileiro, Profissão: Esperança (1974), como quase um outro orixá. Interpretada com energia surpreendente por Carol Costa, Bibi atravessa a encenação inteira com um vestido que reproduz o seu figurino no espetáculo Gota d’Água, de Paulo Pontes (1940-1976) e Chico Buarque. Todo o texto da personagem é dado com a mesma entonação trágica empregada pela atriz na pele de Joana, a mulher traída e abandonada pelo marido, naquele emblemático espetáculo. Um acerto da criativa direção que inventa possibilidades quando, sob um ponto de vista conservador, o público veria apenas a mera presença de mais uma personagem.

Assim como Bibi, os demais nomes importantes da vida de Clara ganham identidades próprias. Na pele de Aurino Araújo, o empresário e namorado que trouxe a cantora de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro em 1965, André Torquato dá um salto significativo como intérprete. Em uma composição forte e viril, o ator em nada lembra os recentes papeis marcantes das peças A Herança e Cabaret e aponta um novo caminho em sua trajetória. Deixa de lado uma imagem juvenil para se projetar como um homem adulto.

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O cantor e compositor Caio mostra carisma e potencial de interpretação na pele do radialista Adelzon Alves, que aproximou a artista do samba e remodelou sua imagem. O ator e bailarino Vitor Vieira, conhecido por sua presença versátil nos palcos paulistanos, por sua vez, constrói com lirismo o personagem Poeta, uma alegoria inspirada no compositor Paulo César Pinheiro, com quem Clara foi casada até o fim da vida.

O trunfo de Badu Morais é que Farjalla não construiu um espetáculo sobre Clara Nunes calcado na imagem de Vanessa da Mata, como seria o esperado. O diretor se inspirou no universo de Clara para criar uma personagem de grande potência em permanente conexão à biografia e aos feitos da artista, mas não restrita a ela. Por isso, nem um detalhe sequer da vida da cantora se sobrepõe à dramaturgia e centraliza as atenções – tudo está ali como informação em um conjunto que parte de Clara para também tratar de, entre outras coisas, brasilidade e sincretismo religioso.

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A morte do pai de Clara, por exemplo, é revivida em uma sequência que já dá conta também da relação superprotetora desenvolvida por ser irmão mais velho. Não serve de gancho para criar um capítulo melodramático sobre as raízes da artista. A consagração da estrela, como a primeira mulher a vender mais de 100 mil discos no Brasil, é um importante elemento da trama, mas não se torna inspiração para um discurso feminista em relação à indústria fonográfica, que, em uma visão mecânica de muitos diretores, seria privilegiado.

Clara Nunes – A Tal Guerreira é um forte espetáculo de teatro, cheio de camadas e nuances. Para Jorge Farjalla, Clara Nunes ganhou a cena como uma grande personagem teatral e grandes personagens podem ser interpretados por grandes atrizes ao longo dos tempos e em diferentes épocas – ou, quem sabe, na mesma época. Neste momento, Clara Nunes é de Vanessa da Mata e de Badu Morais, esta última uma artista que, certamente, merece a atenção de todos e, por causa da surpresa de vê-la em cena, repito, este texto foi escrito.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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