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Foto: ANDRE VOULGARIS
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“Depois do Ensaio, Nora, Persona” elimina fronteiras para atores e atrizes brancos e pretos em novo acerto do diretor José Fernando Peixoto de Azevedo

O espetáculo funde os universos de Henrik Ibsen e Ingmar Bergman e desafia a teoria de que certas obras sobre gente branca são escritas para artistas brancos

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Com o espetáculo Depois do Ensaio, Nora, Persona, o dramaturgo e diretor José Fernando Peixoto de Azevedo, de 49 anos, reforça uma curva que permeia seu trabalho nas últimas duas décadas. Em 2022, ele provocou certo incômodo ao montar uma vigorosa e surpreendente versão contemporânea de Um Inimigo do Povo, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), em que abordou a mobilidade social e reuniu atores e atrizes brancos e pretos em uma escalação nada de óbvia.

Dentro desta perspectiva, o médico Thomas Stockmann era interpretado por Rogério Brito, ator negro, e seu irmão, o prefeito da cidade, Peter Stockmann, foi vivido por Sergio Mastropasqua, que é branco, assim como Clara Carvalho, responsável por Catarina, mulher do protagonista. Esta personagem, por seu turno, é filha de criação de Morten Kiil, representado por Augusto Pompeo, também preto. A estranheza inicial se desfazia no decorrer da encenação e abria possibilidades inéditas de leituras, inclusive a de que a cor da pele dos artistas não era tão relevante assim para a compreensão da dramaturgia.

Na carreira acadêmica, Peixoto de Azevedo ingressou na Escola de Arte Dramática (EAD), da USP, em 2004 e permaneceu até 2023 como o único professor preto na história da instituição. Ele colaborou na fundação da Cia. Os Crespos, formado por alunos e alunas pretos da EAD, criou o grupo Teatro de Narradores e, em 2018, dirigiu o espetáculo Navalha na Carne Negra, peça de Plínio Marcos (1935-1999), em torno do conflito entre uma prostituta, um cafetão e o faxineiro de uma pensão, representados, respectivamente, por Lucelia Sergio, Rodrigo dos Santos e Raphael Garcia, todos pretos.

Em Depois do Ensaio, Nora, Persona, Peixoto de Azevedo reencontra o norueguês Henrik Ibsen, autor de outro clássico, Casa de Bonecas, manifesto da emancipação feminina escrito em 1879. Junto desta peça emblemática, o encenador acoplou outras duas obras do cineasta e dramaturgo sueco Ingmar Bergman (1918-2007), Depois do Ensaio e Persona, tramas sobre gente branca escritas para serem interpretadas e vistas por gente branca e, se possível, próximas ao tipo físico comum aos habitantes nórdicos.

Foto: ANDRE VOULGARIS

Depois do Ensaio é um telefilme realizado em 1984, sobre os bastidores do processo de uma montagem teatral, e Persona, um longa-metragem para o cinema, este de 1966, sobre a relação de uma enfermeira e uma atriz que surtou durante a sessão de uma peça e se recolheu ao silêncio. Casa de Bonecas, bastante conhecida, já foi protagonizada nos palcos brasileiros por, entre outras, Tônia Carrero (1922-2018) e Ana Paula Arosio. Não precisa dizer quase mais nada.

O que teriam estes três textos em comum? Talvez nada? Talvez a relação com o teatro? Talvez o fato de enfocar mulheres – brancas – oprimidas? Talvez tudo, por mostrar que as angústias de cada um dos personagens adquirem novas camadas se alguns deles forem representados por atores e atrizes que não sejam brancos? É nesta subversão que Peixoto de Azevedo diferencia o espetáculo de ser apenas mais uma das tantas montagens inspiradas em Ibsen ou Bergman. Algo que ele não alcançou em Navalha na Carne Negra, afinal, nada mais comum que tipos marginalizados representados por pretos, mas conseguiu e muito em Um Inimigo do Povo.

Sem levantar uma bandeira aparente ou questionar que o lugar de fala pode ser bem mais flexível do que o que se prega normalmente, o encenador comprova o quanto o teatro é preconceituoso ao privar certos atores e atrizes de muitas histórias que, sim, eles poderiam contar. A dramaturgia trata de angústias universais, não? Então, quem disse que tais problemáticas devem ficar limitadas aos personagens brancos e, logo, os atores e as atrizes pretos devem ser descartados. Alguém disse e todo mundo comprou. Peixoto de Azevedo, desde Um Inimigo do Povo, começou a dar um jeito nisto de uma forma mais explícita.

É bom ficar preparado. Depois do Ensaio, Nora, Persona, em cartaz no Sesc Avenida Paulista, é longo, dura quatro horas para mais, com um intervalo, e apresenta três peças em uma. Em Depois do Ensaio, o diretor Henrik Vogler (interpretado por Rodrigo Scarpelli, ator branco) prepara a sua quinta encenação de Casa de Bonecas e chama para o papel de Nora a atriz Ana Elisabet (vivida por Thaina Muniz, atriz preta), que se considera jovem para a personagem. “Vou remontar como imagino que Ibsen faria hoje, agora”, justifica ele. Vogler foi, no passado, amigo do pai de Ana Elisabet e teve um caso com a mãe dela, que também era atriz, Rakel (defendida por Izabel Lima, preta).

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A próxima peça dentro da peça é Casa de Bonecas, rebatizada por Peixoto de Azevedo de Nora e o suposto resultado do trabalho desenvolvido por Henrik Vogler na cena anterior. Nora, interpretada por Ana Elisabet, que, por sua vez, é Thaina Muniz, é a burguesa insatisfeita no casamento que, no final, chuta a porta do lar em busca de uma vida que julga merecer. Torvald Helmer (representado por Daniel Tonsig), o seu marido, acaba de ser promovido a diretor de um banco e, carinhoso e superprotetor, ele passa a estranhar o comportamento da mulher.

Nora, na verdade, é vítima da chantagem de Nils Krogstad (papel de Victor Mota), que está prestes a ser demitido do banco e cobra alguns favores que a mulher do seu chefe lhe deve. Helmer conta com a amizade e a cumplicidade de Rank (o ator Filipe Roseno), que Peixoto de Azevedo, na liberdade de “remontar Ibsen como ele faria hoje”, descortina uma relação homossexual entre os dois.

Atenta a boa parte do que acontece na casa de bonecas, as empregadas Helena e Maria (vividas por Castilho e Izabel Lima, respectivamente) completam a lista de personagens da trama, que ainda conta com Cristina (a atriz Ellen Regina), amiga de Nora, também interessada nos proveitos que pode tirar desta relação.

Por fim é a vez de Persona. A atriz que entrou em crise durante uma sessão da tragédia Electra, de Sófocles, é a própria Ana Elisabet, representada, claro, por Thaina Muniz. A médica da clínica (vivida por Ellen Regina) encarrega a jovem enfermeira Alma (representada por Castilho) da difícil missão de cuidar da artista, que, mesmo sem registrar nenhum problema físico, se recusar a falar e permanece fechada em um mundo de silêncio. “O silêncio era um papel como qualquer outro”, decifra a doutora, no final.

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Aos poucos, a relação das duas vai se transformando e diferentes camadas são oferecidas ao público. Temas, como a depressão pós-parto e a competitividade, entram em discussão e, tanto Ana Elisabet como Alma, se assumem como mulheres solitárias, frustradas e infelizes. “Eu queria um amor, mas não tenho” ou “eu não sou você, sou apenas uma coadjuvante de sua história” são duas frases simbólicas vociferadas por Alma, em elevada irritação com a paciente.

Em paralelo a toda a encenação, uma das principais marcas da assinatura de Peixoto de Azevedo se materializa como mais umas das tantas linguagens exploradas no espetáculo: o diálogo entre o cinema e o teatro. Assim como em Navalha na Carne Preta, As Mãos Sujas, empolgante versão da peça de Jean-Paul Sartre (1905-1980) vista em 2019, e Um Inimigo do Povo, uma câmera transita permanentemente entre os atores e as atrizes, registrando a peça e fazendo dela simultaneamente um filme em tempo real, mais fortemente em Nora e Persona.

Enquanto em Navalha na Carne Preta, As Mãos Sujas e Um Inimigo do Povo, o recurso poderia ser encarado apenas como mais um conteúdo imagético, em Depois do Ensaio, Nora, Persona, a câmera se torna um enriquecedor ponto de vista. Bergman é, principalmente, cinema e, como o estilo de algumas de suas histórias se aproxima do universo de Ibsen, principalmente Casa de Bonecas, o diretor sueco, além de personagem, se torna também um artista em um ato de criação. Neste jogo, é o diretor Henrik Vogler (o ator Rodrigo Scarpelli), inegável alter ego de Bergman em Depois do Ensaio, que faz às vezes do cineasta sueco.

Um pouco personagem, um pouco realizador da sua obra em ritmo simultâneo, Scarpelli transita junto às câmeras operadas por Daniel Tonsig e Filipe Roseno em uma imagem teatral carregada de significados. Também é possível reconhecer nas cenas filmadas de Ana Elisabet e Alma uma aproximação dos closes e planos fechados do cineasta brasileiro Walter Hugo Khouri (1929-2003), considerado, com o perdão do clichê, o mais bergmaniano dos nossos realizadores.

Scarpelli, aliás, um dos mais expressivos atores dos palcos paulistanos na atualidade, com domínio técnico e bem-vinda visceralidade, é o destaque do elenco em permanente desafio. Quem o viu no monólogo Ensaio sobre o Terror, outra direção de Peixoto de Azevedo, sabe que se trata de um artista incomum. O intérprete, no entanto, além de mais experiente, carrega uma imensa vantagem em cima da outra protagonista do espetáculo, Thaina Muniz – ele é sempre o mesmo personagem, Henrik Vogler.

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As constantes trocas de papéis resultam em um teste rigoroso para a maioria dos intérpretes porque esta proposta de direção não é nada simples. Assim, não seria justo criticar mais friamente o trabalho de Thaina Muniz, mas é inegável que a atriz se expressa muito melhor em Depois do Ensaio e Nora e se mostra menos segura na exigente participação em Persona. Mesmo que Thaina, na teoria, esteja ali na pele da mesma personagem, Ana Elisabet, na prática se torna diferente, porque ela é exigida em uma complexidade muito maior.

Na contracena com Castilho, que, menos explorada nas cenas anteriores, joga toda a energia economizada em Alma, o contraste é visível. Ainda assim é notável a unidade do elenco, como os resultados alcançados por Daniel Tonsig, Filipe Roseno, Izabel Lima e Ellen Regina em Nora, a parte em que o teatro, em sua estrutura tradicional, pode ser mais apreciado na trilogia.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Sobre
Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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