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Dos palcos à telona, Down Quixote é o filme que todos deveriam assistir

Coluna Por Natália Beukers

Assistir ao filme Down Quixote – inspirado na obra clássica de Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha – é vivenciar uma experiência artística completa: tem a beleza digna de uma obra de arte, traz a discussão social e de inclusão à tona. Faz referências a grandes obras da literatura, é bem-humorado, de maneira que o espectador se diverte ao assistir, e, por fim, educa o público em relação ao teatro – o filme é repleto de elementos teatrais, como veremos mais adiante.

Num elenco integralmente formado por atores com síndrome de Down, o autor e diretor Leonardo Cortez esbanjou talento ao registrar e unir em uma única obra sensibilidade e beleza nas relações humanas. Não é à toa que o filme foi selecionado para integrar, neste ano, o Festival do Rio – entre os mais importantes eventos de cinema da América Latina.

Como explica Cortez: “O filme acontece, durante a pandemia, na cabeça de Diogo Junqueira, o ator que aparece na primeira cena. Assim, este ator imagina como seria contar a história do Dom Quixote, e como seria trazer os amigos para a cidade de Tiradentes, Minas Gerais, onde está passando a quarentena.”

Quando tive a oportunidade de assistir ao filme há alguns meses, no Cine SESI-SP, fiquei perplexa. Fui tocada por essa narrativa e sai do cinema com esperança em dias melhores: “Sonhar mais um sonho impossível! Lutar quando é fácil ceder.” – assim como sugere o trecho da música Sonho Impossível, parte da trilha sonora do Musical O Homem de La Mancha.

Ainda cabe mencionar que o diretor de fotografia, um dos pontos especiais do filme, é um grande amigo: Patrick Hanser. Fizemos o primeiro semestre da faculdade de cinema juntos. Eu optei por largar o curso – a paixão pelo teatro, já àquela altura, apresentava outros caminhos a serem por mim trilhados – Pat continuou no audiovisual, onde parece ter lugar cativo! Seu talento transparece, a cada take.

A seguir, vamos conhecer a visão do próprio diretor sobre o Down Quixote e como foi seu processo de criação.

De onde surgiu a ideia do filme?
Leonardo Cortez: De um grupo de teatro, exclusivamente composto por atores com Down, que existe há 25 anos e que surgiu por consequência de um trabalho pedagógico e que permanece; o mais importante é o processo e crescimento individual de cada um. O fato de o projeto ter sido criado a partir deste viés, contar apenas com esses atores com síndrome de Down, redimensionou a experiência artística do filme, que por isso o tornou valioso. De outro lado, toda vez que me proponho a realizar um processo em arte-educação, me amparo no trabalho de grandes dramaturgos; sempre monto os clássicos. Com esse grupo não foi diferente – só de Shakespeare eles já montaram cinco peças.

Além disso, sempre achei o Dom Quixote uma personagem com muitos paralelos com pessoas com síndrome de Down. Pelo fato dele ser um sonhador, de ter um senso de justiça muito forte, por sempre projetar coisas grandiosas, mesmo em pequenas coisas. Eles têm essa capacidade de projetar a grandeza nas experiências cotidianas – o que é um grande ensinamento. Eles ainda têm a inteligência emocional de valorizar todas as experiências que vivenciam, de maneira intensa, além de terem um senso humor particular. Assim, em 2018 começamos a trabalhar Miguel de Cervantes. Lemos o texto original, depois adaptações, e, depois, mergulhamos nesse universo por meio de improvisos e jogos teatrais. A partir do trabalho apresentado por eles, escrevi uma adaptação para o teatro – ficou pronta em 2019.

Cena de ‘Down Quixote’ — Foto: Divulgação

Mas, quando veio a pandemia, tudo ficou paralisado. E, o contexto do filme é a história do momento que estávamos vivendo. Os atores estavam cada um em suas casas, com a expectativa de voltarem a fazer aquela peça pela qual já estavam muito apaixonados. A ideia com o filme, era, justamente, oferecer ao público esse sentimento de identificação com a melancolia daquele momento – todo mundo se viu privado de fazer aquilo que gostava. Mas quando vi, a partir dos ensaios online, a intensidade com que estavam levando o processo adiante, percebi que eles haviam entendido o que era interpretar para uma câmera. Estava, também, em um movimento pessoal de querer fazer filmes, assim, durante o período pandêmico, fui estudar cinema. Aí juntou tudo: estava mergulhado nesse universo; vi os atores nos ensaios online interpretando com intensidade; o grupo já tinha 25 anos e nunca havia feito um filme nesses moldes, apenas com atores com síndrome de Down… Amo a história de Dom Quixote e sempre quis gravar um filme em Tiradentes, Minas Gerais. Então apresentei o projeto para o SESI e eles, muito rapidamente, toparam.

Todos encararam o desafio com a seriedade que o trabalho demandava – houve um longo preparo para atingir este resultado. De agosto até dezembro de 2021, eles ensaiaram todos os dias para realizar o filme. Fizemos um trabalho de preparação de elenco muito intenso junto com a Glaucia Libertini. Era preciso que eles estivessem muito firmes para executar o trabalho, mas que tivessem, também, o entendimento da mudança de linguagem – do teatro para o cinema. Pois são atores de teatro – acostumados a interpretar no palco, e o cinema tem suas especificidades. Foi um processo muito profundo. E aí fomos para Tiradentes, no começo de dezembro de 2021, e realizamos o filme em 17 diárias – o que também é muito pouco para um filme de duas horas

Inicialmente, o que gostaria de transmitir ao público com este projeto?

LC: Uma mensagem de fé perante as diversas potencialidades do ser humano. Quando falamos em pessoas com Síndrome de Down, temos tendência a olhar para suas limitações. É um olhar que já está introjetado em nossa sociedade. Mas, na verdade, há uma imensa potencialidade – uma maneira diferente de ver o mundo, as pessoas, as relações e a própria arte. Isso faz com que eles criem coisas absolutamente inéditas, fascinantes, empolgantes e redentoras. Então, quando criada uma estrutura para que essa potencialidade se revele, cria-se, também, a oportunidade desses atores mostrarem uma compreensão diferente do mundo. Meu objetivo era esse. Nas primeiras reuniões com a equipe, por exemplo, exigi que todos colaborassem para que o clima de filmagem fosse o mais amoroso e harmonioso possível; não podíamos correr o risco de ter qualquer briga, chilique, pois isso poderia impregnar os atores, que são muito sensíveis e bastante permeáveis. E nós conseguimos: tivemos um set de filmagem absolutamente calmo.

Cartaz do filme ‘Down Quixote’ — Foto: Divulgação

Um aspecto que goste bastante no filme?
LC: O fato de ser uma obra muito democrática, onde há espaço para todos os atores. Todos têm seu momento de protagonismo, destaque – essa era uma premissa. Quando fui estudar cinema, ouvi muitos profissionais dizerem: “Você não precisa ligar para o ator, você precisa dar importância para a obra, o importante é a narrativa.” Mas eu sabia que, neste caso, precisava dar espaço a todos eles. A riqueza humana que aparece no filme, as diferentes habilidades, diferentes demonstrações de fé no trabalho do intérprete, criou um grande painel amoroso, em que todos exercem seus papéis com muita força, vontade e integridade – isso renova permanentemente o interesse de quem assiste. Por exemplo, temos o Ian Pereira – que faz o papel título – um ator maravilhoso, vocacionado, que tem muita facilidade vocal e corporal, e temos também atores como o Felipe Linden – o feiticeiro Damião. Apesar da cena do Felipe ser uma participação muito pequena, é uma das minhas cenas prediletas. Isto porque, sei o quanto aquilo foi um desafio para ele – todos sentimos a grandeza daquele momento no dia da gravação. Para ele foi uma cena grandiosa, assim como também para mim. A percepção da grandiosidade dos pequenos momentos é que fez a grandeza do filme.

Cena de ‘Down Quixote’ — Foto: Divulgação

Qual a relação do filme com o teatro?
LC: Como diretor, tive uma percepção sobre o filme que vem do teatro. Pelo fato de eu ser um diretor de teatro; isso fez diferença em muitos aspectos. O primeiro deles é o aspecto pedagógico que já citei. O teatro é o universo da escuta, da plena interlocução, e isso também direcionou o filme. Quando você é diretor de teatro, você conversa de igual para igual com todo mundo que está envolvido na obra, todos os elementos do espetáculo precisam estar muito interligados e em sintonia com o grande objetivo a que se pretende chegar. Para isso, é preciso que haja interlocução constante – e foi isso que busquei nessa experiência cinematográfica. Sabia que o filme deveria estar impregnado de elementos teatrais; tinha muita clareza do que queria, do que significava este trabalho, o trabalho com este grupo. Mas, ao mesmo tempo, não tinha domínio de muitos dos aspectos que compõem a linguagem cinematográfica.

Então, me preocupei em estar ao lado de pessoas que entendessem muito do assunto. Meu encontro com o Pat [Patrick Hanser] – diretor de fotografia –, é um encontro de almas, muito lindo. Ele foi meu aluno, isso em si, já abarca o princípio pedagógico do teatro. Ele é um cara muito sensível, generoso, humano. Nós decupamos o filme durante quatro meses, pensando em quais câmeras usaríamos, o que queríamos falar com cada cena, pensando na subjetividade delas – pois o cinema é essa somatória de elementos: é possível transmitir subjetividades ao público através da imagem.

Gostaria de chamar a atenção para algum aspecto do filme?
LC: Sim. Por que a interpretação de João Simões – o Sancho Pança – é tão cativante?! Meu palpite é que ele chama o foco de maneira permanente, à medida que mostra ao espectador que ele está muito consciente de sua personagem. Só que para passar isso ao público é necessário um tempo para acontecer. Ele chega em cena, dá duas suspiradas, duas gaguejadas e o espectador fica com a atenção completamente voltada para sua interpretação; então, ele fala algo lindo. Isto é, ele prepara você para receber o que está por vir. Quando fizemos o primeiro corte do filme, percebi que a montadora (Thais Cortez) cortou esses tempos, essas respiradas e gaguejadas, porque ela queria dar dinâmica ao filme. Mas, neste caso, era preciso manter todos aqueles tempos. Era preciso fazer com que o espectador entrasse no tempo daquelas personagens, mesmo que essa escolha dilatasse o filme um pouco. Se você entra no tempo do filme, você se envolve com ele.

Agora, o outro lado da moeda: o contrato padrão do mercado audiovisual permite um tipo de estelionato autoral. Muitas vezes estamos assistindo a obra de um diretor que não concorda com o que ela se tornou, pois ele não tinha a palavra final daquilo. Precisamos criar mecanismos que permitam ao criador da sua obra ter a palavra final sobre ela. E se você, como patrocinador, não quer dar a palavra final a ele, não patrocine a obra desse artista. Dê o corte final para o seu autor, para quem está propondo a obra. Uma obra, quando sai do papel e vira realidade, é resultado de muitos anos de pensamento, de amadurecimento, de pesquisa. Se você subverte isso, cria-se um Frank Stein em que todo mundo se engana – a potencialidade da obra se torna diminuta. Então o filme só saiu desse jeito – com todas as respiradas do nosso Sancho, porque tínhamos a palavra final e ela nos foi dada pelo lugar de fala que tinha diante deste elenco e deste público – afinal, são 25 anos de processo. Havia autoridade para falar do assunto.

O que você aprendeu com esse projeto?
LC: As pessoas com Síndrome de Down têm muito a nos ensinar sobre como absorver as coisas. Estamos em um mundo onde tudo é muito rápido, corrido, em que temos que focar em mil coisas ao mesmo tempo. Eles têm outro tempo, outro ritmo, e nós estamos precisando disso hoje em dia. Eles desaceleram para absorver, para aproveitar os momentos. Os Downs são agentes catalizadores da harmonia e todos nos beneficiamos com esta convivência. Quando comecei a fazer teatro, era como eles: tinha esse entusiasmo, essa fé. E eles renovaram isso em mim. Devo muito a eles. O nosso encontro semanal é muito valioso e é assim que me comporto com todos eles, com essa energia de estar muito a fim de fazer teatro. Eles sempre vêm o copo meio cheio. Durante os ensaios online eles se dedicaram tanto, colocavam cenário, apareciam com figurinos; eles valorizaram cada segundo dessa experiência.

Quais são as suas expectativas para o filme?
LC: O filme está impactando pessoas muito além do que imaginávamos. Sabia que o filme seria muito bem-visto pela comunidade, pelas pessoas envolvidas com a causa da Síndrome de Down, pelas instituições e famílias. Mas, a maior felicidade é perceber que o filme está sendo reconhecido pelos seus méritos cinematográficos. O filme tem muitas camadas; fala sobre a Síndrome de Down, sobre a pandemia, a possibilidade de reconstrução do mundo em uma realidade pós-pandêmica. E, essas camadas dialogam entre si. Por conta disso, estamos conseguindo furar algumas bolhas. O filme é um novo painel sobre a deficiência. Queremos encontrar espaço nos streamings, nas salas comerciais… Quanto ao espetáculo de teatro, ainda vai acontecer. Retomamos a peça. Precisamos retomar a essência do grupo, que está no teatro. E a peça irá se chamar Dom Quixote mesmo. É um ciclo que se fecha reafirmando a honestidade desse filme. Ele foi construído com verdade e se encerra de maneira verdadeira.

Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.

 

Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.

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Sobre
Natália Beukers

Natália Beukers

Atriz, criadora do Infoteatro e colaboradora de Cultura da Vogue Brasil, tendo escrito mais de 50 textos até então. Formada em Direito pela PUC-SP (2020), começou a estudar teatro aos 10 anos de idade, formando-se como atriz em 2017. Estudou, de 2017 a 2021, com os atores do Grupo TAPA, participando de três espetáculos do grupo: “Anatol”, “O Jardim das Cerejeiras” e “Um Chá das Cinco”. Foi assistente de produção em mais de 10 temporadas da companhia. A partir da criação do Infoteatro, em abril de 2020, entrevistou mais de 100 profissionais da área teatral.

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