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Foto: José de Holanda
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Em “Finlândia”, Paula Cohen e Jiddu Pinheiro mostram que existe teatro político entre quatro paredes

O casal de atores é dirigido por Pedro Granato em peça do francês Pascal Rambert sobre a cegueira de um homem e uma mulher em fase de separação

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

O drama intimista desapareceu dos palcos brasileiros nos últimos tempos – na última década, nem se fala. Em meio à urgência das pautas identitárias e sociais, montar um texto sobre dilemas de um casal de classe média virou um atestado de alienação. O que não se percebe é que Mão na Luva, de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), À Flor da Pele, de Consuelo de Castro (1946-2026), ou De Braços Abertos, de Maria Adelaide Amaral, só para ficar na dramaturgia brasileira de fases igualmente inflamadas, são exemplos de peças centradas em conflitos pessoais detonados por razões políticas.

Falar do “eu” ou do “nós dois” saiu de moda e, quem sabe, os autores escrevem pensando no que o público vai achar pertinente. Mais ou menos, como se fizessem uma postagem nas redes sociais para a aprovação da bolha. Neste contexto, Finlândia, texto do francês Pascal Rambert, em cartaz no Teatro Vivo, em São Paulo, sob a direção de Pedro Granato, surge como uma raridade nos palcos brasileiros. E não à toa vem de fora.

Lançada na Espanha em 2022, a peça foi montada em Paris, Montevidéu e Cidade do México. Em cena, aparecem dois personagens comuns aos dias de hoje, excessivamente humanos, na tentativa de ir além dos estigmas que envolvem conceitos machistas e feministas e de mostrar ao público que, em situações como aquela, teorias não valem quase nada.

Foto: José de Holanda

Finlândia trata da polarização que destrói relacionamentos, e o fato de o projeto ser idealizado por um casal da vida real, a atriz Paula Cohen e o ator Jiddu Pinheiro, faz a coisa parecer mais interessante. Não há vestígios de jogo de espelhos ou sessão de terapia no palco. Paula e Jiddu emprestam seus nomes aos personagens, que, no original, são batizados de Irene e Israel, dois atores que vivem em Madri com uma filha entrando na adolescência e que, por tantos motivos, enxergam o fim do amor.

A divergência mais óbvia é profissional. Ele, um artista de teatro idealista, enfrenta a ascensão da mulher, que vive uma fase efervescente no cinema. Paula está em Helsinque para rodar um longa-metragem e levou a filha. Jiddu, em entressafra, acomodou-se nos cuidados da garota e na supervisão da rotina do lar. O dois tentam lidar, em sintonias opostas, com o doloroso processo de separação.

É na frieza de um quarto de hotel, na capital finlandesa, que a ação se passa. O ótimo cenário criado por Marisa Bentivegna não tem nada de abstrato e coloca qualquer espectador dentro daquele espaço, endossando o título da peça, a temperatura gélida do país europeu e o caráter prático que deveria guiar os dois personagens.

Foto: José de Holanda

Exausto e desnorteado, Jiddu chega no meio da madrugada à suíte de Paula, que precisa acordar em poucas horas para trabalhar. Ele dirigiu seu carro por quatro mil quilômetros e não sustenta qualquer estabilidade emocional que possa fazer com que o encontro termine em trégua. O objetivo, na mente do marido, é buscar a filha, que dorme em um quarto próximo com a babá, e carregá-la junto da mulher para Madri. Se estivesse em sã consciência, claro, ele saberia que não seria bem assim, mas, desprovido de sensatez, acredita que, deste jeito, a vida voltaria a ser como antes.

Paula não quer assunto e sabe que anda a passos largos em um caminho sem volta. Tomada pela raiva, só abre a boca para ofender o parceiro. Foi por terra qualquer idealização romântica, o que era qualidade virou defeito, e os defeitos, a esta altura, se tornaram inaceitáveis – embora ela mesma esteja cega diante dos dela.

A cada fala, os dois mostram o pior de si e fortalecem os estereótipos típicos de situações do gênero. Jiddu se impõe como o macho agressivo, e Paula acentua uma insensatez que a faz ser chamada de louca. O marido pula, grita e vai para cima. A mulher pula, grita e vai para cima. Um jogo de humilhações que não levará a lugar nenhum.

Foto: José de Holanda

Pascal Rambert é objetivo, não recorre a teorias psicanalíticas e escreve de maneira tão impulsiva quanto a atitude dos personagens. Em quinze minutos, a peça já é explosiva, parece ter chegado ao ápice e vira uma interrogação o que pode acontecer dali para frente. O arriscado recurso dramatúrgico exige da dupla de intérpretes uma intensidade lá em cima que não parecer ter sido minimizada pela direção e surpreendentemente se mantém no decorrer da montagem.

Jiddu é pintado como o escroto e Paula é apresentada como a mimada, só que, por muitas vezes, ela também é escrota e ele age como mimado. Diante desta alternância das personalidades, os protagonistas desarmam os espectadores que podem acusar a escrita de Rambert de machista ou estereotipada. Ninguém ali é defensável e, talvez por isso, precisem de defesa.

Finlândia é uma dramaturgia recente, moderna, sob certo ponto de vista até evoluída, que não coloca em cena homens e mulheres tais como eles foram estruturados no nosso imaginário ao longo de décadas. Como reflexo do momento, a trama promove discussões amplificadas nos últimos anos, e o casal protagonista é o espelho de uma geração que aprende a viver com tais transformações porque foi criado de um jeito diferente.

A mudança estrutural no papel de homens e mulheres no casamento, as responsabilidades de cada um na criação dos filhos e na dinâmica do lar e a forma com que a profissão pode afetar o relacionamento servem de inspiração para Rambert mostrar personagens desafiados pelo tão almejado ideal de viver em igualdade.

Já ficou claro que Finlândia não é só um drama intimista e carrega contornos políticos. Esta mensagem ganha força com a escalação de Pedro Granato, um dos diretores mais versáteis da cena paulistana e marcado por uma falta de preconceito que faz com que ele não fique preso a gêneros ou temáticas específicas em sua trajetória.

Foto: José de Holanda

Granato não se intimida em trilhar o diferente e leva com desenvoltura aos palcos a impactante alegoria política de Onze Selvagens (2017), as crises de uma exausta classe média nas comédias de costumes Pousada Refúgio (2018) e Veraneio (2023), ambas de Leonardo Cortez, e o suspense cerebral de Corpo Intruso (2024), da autoria de Samir Yazbek. É um artista que busca enriquecer as dramaturgias com signos de seu tempo que alimentam o espectador.

Junto de Paula, ele tem duas experiências marcantes, uma releitura esquizofrênica de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, em 2009, e o saboroso monólogo As Lágrimas Quentes de Amor que Só Meu Secador Sabe Enxugar (2014), escrito pelos dois, sobre os desencontros amorosos de uma quarentona.

Finlândia é um trabalho da maturidade de Granato e Paula que se estende a Jiddu, com que o diretor trabalha pela primeira vez. Atriz de personalidade forte e expansiva, presença destacada e de uma feminilidade explosiva, Paula, assim como a personagem, vem de uma fase de reconhecimento em terrenos que ultrapassam o teatro. Seu nome repercutiu nas novelas Nos Tempos do Imperador (2021) e Elas por Elas (2023). Antes disso, já tinha colocado em cena um bem-sucedida solo feminista, Carne de Mulher, dirigido por Georgette Fadel em 2017, que deve ter lhe dado serenidade para encarar com mais razão que emoção a dramaturgia de Rambert.

Jiddu é um ator mais técnico, discreto e, assim como o personagem, parece ser um sujeito de ideias firmes, que persegue um conceito. Além de sócio há quase duas décadas do centro cultural b_arco, ele acumula no teatro experiências que, mesmo esparsas, são significativas. Trabalhou em várias peças de Mário Bortolotto, com o diretor Roberto Lage fez Dois Irmãos, adaptação do romance de Milton Hatoum, e marcou presença nas duas versões do épico Os Sete Afluentes do Rio Ota, realizadas por Monique Gardenberg, em 2003 e 2019, respectivamente. No fim do ano passado, sob o comando de Helena Ignez, participou da rodrigueana Vestido de Noiva.

É visível em Finlândia uma sintonia entre Paula, Jiddu e Granato em relação à concepção do espetáculo e o que cada um quer dizer com a peça. Não existe mocinho e vilão em situações como a abordada nesta peça, e a maturidade do trio, tanto pessoal como profissional, certamente contou para isso ficar claro no palco. Eles certamente enxergaram a importância de falar do “eu” em uma dramaturgia que atinge o todo.

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Como encenação, Finlândia é um gabinete, aquele termo pejorativo no meio teatral contemporâneo que designa peças apoiadas em um texto consistente e intérpretes azeitados diante de um cenário realista. Esta concepção, no entanto, não a caracteriza como menos atual e pulsante, além disso, propicia a Paula e Jiddu personagens propícios para que os dois explorem ao máximo os seus potenciais – outra coisa rara de se ver, quem diria, atores e atrizes desenvolvendo personagens que desafiem seus talentos. E eles entregam tudo.

Em meio a uma dupla de intérpretes em eletricidade contínua, quando se olha ao redor, se vê um quarto de hotel que tem cama, frigobar e, de quebra, a tão citada filha, pivô de tantas discussões, aparece por minutos na cena final, representada pela atriz e cantora Turí. Parece bobagem, mas o público gosta de espelhos e abstração demais, no palco e na vida, enjoa.

Pedro Granato, Paula Cohen e Jiddu Pinheiro, atestando maturidade, foram contra a maré da excessiva subjetividade ou da verborragia panfletária porque entenderam que grandes revoluções também começam entre quatro paredes.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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