O que talvez eu mais admire em um verdadeiro artista de teatro é sua disponibilidade para novos desafios, sua abertura para sair das zonas de conforto. Há grupos premiados e consagrados que poderiam passar a vida fazendo bem o “mais do mesmo”, poderiam se acomodar em fórmulas de sucesso já testadas e estabelecidas – mas, quando você vê, estão envolvidos em nova empreitada maluca e desconcertante.
Falo isso a propósito da peça Cidade Brinquedo, do Grupo Esparrama, de São Paulo, que ficou em cartaz até a semana passada ao ar livre na rua central do Sesc Pompeia. Agora, a peça vai no dia 10/5 para o Sesc Jundiai, depois no dia 25/5 ao Sesc Galeria (antigo Mappin), e no dia 31/5 estará no Sesc Campo Limpo. E estão quase certos também na programação do Festival Internacional do Circo do Sesc, em agosto. A primeira coisa que pensei, vendo o espetáculo se iniciar: como esse grupo gosta de arranjar sarna para se coçar! Expressão antiga, né? Mas é perfeita para o que quero dizer. Uma trupe valente que não consegue ficar sossegada: a cada novo espetáculo, arranjam bons “problemas” para si mesmos.

Qual a sarna da vez? As sessões no Sesc Pompeia foram todas abarrotadas de público, famílias inteiras, com bebês de colo, inclusive. Como é uma proposta de peça totalmente interativa (para crianças, mas também adultos), imaginem o rebolado desse elenco para dar conta de tanta gente ao mesmo tempo, em cenas que claramente ficariam mais fluentes, mais plásticas, mais arrumadinhas e organizadas, se houvesse um número menor de ‘participantes’. Mas que nada, o grupo – muito surpreso com a numerosa adesão de público ao Sesc Pompeia nos fins de semana – não se acanhou e, assim, literalmente se esparramava pelo espaço, fazendo tudo funcionar com potência. Uma divertida celebração ao ar livre, plena de energia e felicidade cênica. Contagiante. Nem eles esperavam tanta gente de uma vez só a cada sessão. O Esparrama poderia estar confortável em uma sala de espetáculos, mas não, em vez disso criou essa Cidade Brinquedo que os desafia a cada cena ao ar livre.
Repetindo a parceria com o dramaturgo Bobby Baq, do premiado Acorda!, o Esparrama mais uma vez investe no tema da cidadania. A cidade é o foco. A arquitetura urbana caminhando na contramão da qualidade de vida. Aqui, o grupo escolheu falar mais especificamente de brincar na rua. Cadê os espaços públicos de brincar, seguros e bem equipados? Cadê? “Brincar na rua?! Rua é lugar de passar carro”, vocifera o vilão da peça, um tal de Arquivaldo Regrário, que surge para ditar regras descabidas, que valorizam mais a usura e a ganância do que equilíbrio e harmonia. “Brincar de rio não está na norma. Rio não pode. A cidade precisa crescer”, prossegue ele, num registro cômico muito bem escolhido pelo ator Kleber Brianez, que lembra os vilões caricatos de desenho animado.

Em cena com o ótimo Kleber estão Rani Guerra (Batatinha), Lígia Campos (Pafúncia Maionese), Laruama Alves (La Rosa) e Fabiana Carqueijo (Puntiléia). Todos cantam que é uma beleza. Afinados, concentrados e felizes. Lidam com o público com boa desenvoltura e criatividade. Garantem todas as características de suas personagens, segurando as interpretações e o texto com rédeas curtas e firmes, ao mesmo tempo em que precisam ter tato e delicadeza para lidar com as “intempéries” de um público solto no meio da rua, e de todas as idades. Isso não é para qualquer um. Esse talento específico para o improviso de rua foi sendo aprimorado ao longo dos anos na história da companhia. E chegou agora ao seu ápice na proposta ambulante de Cidade Brinquedo. Como eles mesmo definem, mais do que uma peça, é uma “ocupação brinquedo”.
Na orquestração dessa verdadeira aventura está mais uma vez o capitão da nave Iarlei Rangel, um diretor cuja presença física durante a apresentação da peça se mostra fundamental, contribuindo decisivamente para a fluência das cenas. O corre-corre do diretor pelo espetáculo é uma atração à parte, assim como observar o carrinho-carroça de som se movendo pela rua, de acordo com a necessidade de cada cena. Cidade Brinquedo é um exemplo perfeito de peça que depende muito de uma equipe de apoio, presente ao vivo fora da cena, para que tudo transcorra como previsto. Chega a emocionar tanta competência desses heróis da equipe técnica.

Quando a proposta depende tanto assim da interação do público e do andamento das brincadeiras sugeridas, é comum que o espetáculo perca um pouco do cuidado precioso com o texto. Mas com o Esparrama isso nunca ocorre. Vou dar um exemplo de como, em Cidade Brinquedo, não houve descuido na dramaturgia. Na cena em que vão brincar de voar, sugere-se que cada criança escolha o passarinho que quer ser. O palhaço Batatinha (Rani Guerra) diz que quer ser ou avestruz ou uma galinha-helicóptero. “Mas esses não são pássaros”, ele ouve, acabrunhado. Isso parece bobo e aleatório? Claro que não. É um retrato acurado e muito bem pensado de como as crianças brincam. Nas brincadeiras das crianças, não tem sempre aquela que é criativa, que quer ser do contra, que quer inventar mais do que as outras, que tem talento para revolucionar o combinado? Pois é dessa criança que a cena quer falar nesse momento. E a identificação será imediata na plateia. Inteligência dramatúrgica brotando de uma aparente simplicidade de palhaço.

Vale dizer que o espetáculo só nasceu depois que o grupo conversou bastante com uma “comissão” de crianças e ouviu delas o que deveria estar em cena, quais temas, que brincadeiras. Luxo dos luxos. Sensibilidade incrível tomar essa atitude e valorizar em cena os pedidos e as inquietações surgidas nas entrevistas prévias com o púbico mirim. Não bastasse isso, a peça termina com um convite às crianças presentes: deem seus recados para os nossos governantes! Sai cada coisa linda e espontânea… Esse Esparrama é danadinho mesmo. Depois de tanta brincadeira e músicas com letras divertidas e assertivas, ainda faz a garotada sair do papel de espectadora e praticar a defesa da cidadania, tomando partido da importância de brincar. Palmas, palmas e mais palmas.
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