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Foto: Elisa Maciel
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“In on It” em dois tempos e os constantes movimentos da vida e de um raro espetáculo

Quinze anos depois, a marcante peça de Daniel MacIvor volta, protagonizada por Emílio de Mello e Enrique Diaz, arrebatadora como sempre e aberta a novas leituras

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

O amadurecimento de um artista está diretamente ligado às experiências acumuladas ao longo do tempo. O avanço pode ser refletido no resultado através do estudo, da prática do ofício e das vivências íntimas.

Quanto à compreensão do espectador sobre uma obra, os mesmos quesitos costumam ser determinantes – ainda que de forma menos comum. No cinema, música ou literatura é corriqueiro o público retomar o contato com um produto artístico depois de um hiato. No teatro, não. O espetáculo foi apreciado e, graças ao caráter efêmero, raramente será revisto em busca de um novo olhar.

A retomada de In on It, texto do dramaturgo canadense Daniel MacIvor, quinze anos depois da estreia no Rio de Janeiro, com o mesmo formato, é uma extraordinária possibilidade de provar o quanto o tempo interfere na realização e no entendimento de uma montagem.

Lançada em 2009, a peça chegou a São Paulo em janeiro do ano seguinte cercada de expectativas e referências elogiosas. Sob a direção de Enrique Diaz, os atores Emílio de Mello e Fernando Eiras se esbaldavam em todas as possibilidades de uma dramaturgia em espiral desconstruída ao longo de 80 minutos no Teatro Faap. Como apoio, eles contavam só com duas cadeiras e uma jaqueta, inicialmente jogada no chão, que, gradualmente, parecia se mostrar parte da história.

Foto: Elisa Maciel

Vale lembrar que em 2010 o Brasil era outro. A economia surfava em uma fartura que nem parecia realidade, as redes sociais eram vistas como brincadeira de adultos e, em quatro anos, o país sediaria uma Copa do Mundo que se tornaria um golpe na autoestima até daqueles que jamais vibraram com um gol. O público, que lotava as sessões de In on It, era mais feliz, desencanado e enxergava um transbordamento poético em meio ao drama dos dez personagens defendidos por Mello e Eiras.

Quinze anos depois, ninguém duvida de que nada será como antes. In on It reestreou no Rio em julho do ano passado com fãs voltando para rever a encenação e outros jurando que preferiam não quebrar o arrebatamento da primeira vista. No decorrer da temporada carioca, Eiras foi substituído por Diaz, que, além de diretor, trabalhou como ator em sessões daqueles tempos felizes que se estenderam, com menor regularidade, até 2015.

In on It é uma peça em três tempos carregada de metalinguagem. Uma metalinguagem soberba que se alinhas às histórias e não se estrutura em depoimentos pessoais sobre dramas, traumas ou epifanias, como se tornou comum. Tudo é mentira, faz de conta, ficção teatral. Podem rir e choram sem culpa.

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Para Diaz e Mello, não exige uma introspecção prévia para o personagem chegar, tanto que nas sessões do Tucarena, em São Paulo, os dois circulam em meio à plateia quando a porta é aberta para a entrada das pessoas. Eles puxam assunto com o público, abraçam quem é conhecido, fazem brincadeiras e, se o pagante for atrevido, são capazes até de posar para selfies.

Bem, voltando à dramaturgia… In on It é dividida em três planos que se sobrepõem e se entrecruzam, o presente, o passado e a ficção, no caso, a peça dentro da peça. No primeiro deles, Mello e Diaz representam dois artistas em uma sala de ensaios quebrando a cabeça para achar a melhor forma de levar um texto ao palco. Um ou outro blecaute avisa o público que, na sequência, começa o espetáculo criado pela dupla que ganha a cena e gira em torno de diferentes rompimentos, principalmente causados por separação e morte.

Mais um blecaute, e os mesmos atores deixam claro o motivo de tanta animosidade e impaciência na hora dos ensaios. Os dois viveram uma intensa relação amorosa, cheia de grandes recordações trazidas à tona, mas, agora, enterram a admiração mútua como proteção ao luto do rompimento. “Viu, a gente foi feliz algumas vezes?”, diz um, depois de se lembrar de um caso divertido. “Não, algumas vezes a gente não estava triste”, responde o outro.

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O protagonista da peça – aquela dentro da peça – é Ray, um sujeito que se sente falando sozinho. Em uma visita ao médico, ele descobre que tem algo grave que nem os exames detectaram e será necessária uma internação. O filho, egocêntrico, se recusa a lhe escutar, a mulher pede o divórcio antes de ouvir a notícia e o pai, debilitado, mal o reconhece.

A primeira fala de In on It é a seguinte: “Algumas coisas acontecem porque foram cuidadosamente planejadas, duas pessoas se casam, alguém constrói um barco, uma pessoa escreve uma peça. Coisas que acontecem entre listas de convidados, letras miúdas e revisões. Mas também existem as coisas que acontecem a despeito do nosso controle.”.

É com base nesta observação que MacIvor desenvolve a dramaturgia, o acaso que nem sempre é tão por acaso, coisas que ocorrem como consequência de algumas outras nem tão óbvias. É a vida de Ray, a crise do relacionamento dos atores, a ideia de que, voltando a trabalhar juntos, os dois reacenderiam a paixão, a incomunicabilidade em todos os campos e, por fim, aquela fração de segundos em que tudo desmorona.

Em um jogo minimalista, In on It trata das coisas mais simples da vida, aquelas que habitam o cotidiano de qualquer espectador. Mesmo embalada em uma escrita sofisticada, a peça é compreendida por qualquer espectador porque fala de amor, indiferença, morte e, até quando o assunto gira em torno de arte, tudo é exposto sob uma perspectiva humana.

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Cada um dos planos tem o seu conflito. No passado, o atrapalhado jogo de sedução dos amantes evolui para um relacionamento e, no presente, a dificuldades deles em lidar com o ressentimento compromete o processo da montagem. Mesmo na metalinguagem, a problemática não se cria em torno do discurso artístico, como é comum neste estilo de peça, mas por causa da desavença amorosa.

A dramaturgia engenhosa e de criatividade ímpar rende inúmeras análises. Só que de nada adianta valorizá-la como texto se ela não for defendida por atores com desenvoltura para transitar por diferentes camadas e personagens tão distintos. Os intérpretes precisam dominar a carpintaria e conhecer o tempo do outro colega – o que só é possível com a intimidade.

Por isso, Mello diz que só faz sentindo rebobinar In on It junto de Eiras e, com a impossibilidade deste, a única solução é Diaz. O atual parceiro foi e é o maestro de todo esse jogo, além de nutrir intimidade com as dramaturgias desconstruídas desde o auge da Cia. dos Atores, coletivo carioca do qual foi um dos fundadores e principal diretor.

A afinação de Diaz e Mello é exemplar, um raro equilíbrio entre a demonstração técnica e um investimento emotivo que aflora diversos sentimentos no público. Os quinze anos que separam a estreia de In on It desta retomada, entretanto, são bastante representativos na trajetória dos dois atores.

Em 2009 ou 2010, Diaz era tido como um grande encenador que raramente fazia trabalhos de ator e, nestes quinze anos, sua imagem se inverteu. Ele pouco dirigiu, ficou popularizado em novelas e filmes que atestaram a sua versatilidade de intérprete e criou uma cumplicidade com o público que o deixa mais seguro diante das múltiplas possibilidades de In on In.

Mello, por sua vez, continua um grande ator por excelência, mas, desde In on It, teve apenas um momento representativo nos palcos, na peça Os Realistas, dirigida por Guilherme Weber em 2016, com Debora Bloch, Mariana Lima e o próprio Eiras no elenco. Em contrapartida, ele desacelerou das novelas, protagonizou quatro temporadas da série de televisão Psi (2014/2019) e dirigiu espetáculos, entre eles, Os Mambembes, em cartaz no Teatro Casa Grande, no Rio, depois de percorrer parques e praças do Maranhão, Pará, Espírito Santos e Minas Gerais.

Foto: Elisa Maciel

Todas estas experiências impactam os desempenhos de Mello e, principalmente, de Diaz, assim como, possivelmente, vivências pessoais de ambos, como os filhos, entre a adolescência e o começo da vida adulta, que podem ter mudado as suas perspectivas de tempo, vida e morte contidas no espetáculo.

Quanto a um novo entendimento da obra como espectador, peço licença para recorrer ao texto em primeira pessoa e afirmar que In on It, assim como a maioria de nós, é um espetáculo em permanente renovação. Não sou dado aos exageros, mas sempre guardei a montagem do texto de MacIvor em um lugar de memórias sublimes e fui bastante resistente em assisti-la novamente. Foi Enrique Diaz quem me convenceu, divertidamente, em uma entrevista semanas antes da chegada a São Paulo: “Você tem que rever nem que seja para dizer que estamos velhos e pagando mico”, brincou.

Sentado na plateia do Tucarena, eu me vi em dois tempos. Em 2010, vivendo simultaneamente vários auges que, ingenuamente, pareciam eternos e, em 2025, em meio a uma série de reconstruções que mostra a vida como um constante movimento. Se em 2010, In on It pareceu mais poética e cerebral, quinze anos depois, é totalmente emotiva e de uma tristeza infinita, mas, em momento algum, menos arrebatadora.

Na última cena, um dos atores (da peça e da peça dentro da peça) dispara a seguinte fala antes do derradeiro blecaute: “Mas por que a gente está falando de final, de fim? De qualquer maneira, algumas coisas terminam. Outras simplesmente param.”. Passados quinze anos, deve ser bom para o público que retorna ao teatro interpretar estas frases de um jeito diferente e, para quem as ouve pela primeira vez, será melhor ainda se ecoarem cercadas de emoção.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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