I
Estreou em São Paulo uma peça instigante que realiza amorosamente no palco a conjunção entre a literatura e o teatro: “O outro Borges”, de Samir Yazbek, abordagem dramatúrgica construída a partir de aspectos da vida, do pensamento e da obra do escritor argentino Jorge Luís Borges.
Borges, um dos nomes centrais da literatura latino-americana do século XX, foi poeta, tradutor, ensaísta e contista. Filho de família abastada e culta, herdou uma biblioteca imensa a que deu em sua obra ficcional a imagem simbólica de um labiríntico repositório de livros incontáveis, acervo que reunia a totalidade do conhecimento humano sob a forma das obras filosóficas e literárias escritas ao longo dos séculos. Modernizador sem radicalismos transgressivos, Borges, leitor apaixonado, fez de seu prazer erudito a principal matriz de criação ficcional em seus trabalhos.
Escrever sobre quem escreve requer empenho e familiaridade com a obra escrita, mas escrever sobre um erudito que faz da leitura o patamar de propulsão criativa de seus trabalhos ficcionais é tarefa de dificuldade incomensuravelmente maior.
A dramaturgia nos tempos atuais nem sempre vê com bons olhos a conjunção com o mundo da leitura literária, a não ser quando pode colher dela elementos para transcriar no palco a vida de autores/autoras notáveis ou a de protagonistas ficcionais importantes. Mesmo antes da era midiática em que estamos, durante boa parte do século XX, considerava-se que o texto tolhia o vigor cênico ao invés de agregar à linguagem teatral a força de sua matéria compositiva.
No caso de Borges há outros fatores que tornaram, desde o início, ainda mais complexa a tarefa dramatúrgica envolvida: cego aos 55 anos em decorrência de fator hereditário, ele levou uma vida discreta, desfrutando de um círculo seleto de amizades. Sua cegueira não o afastou dos livros e nem da escrita, e nem o impediu de se tornar amplamente reconhecido, mas sua história de vida nunca esteve associada a conflitos públicos ou mesmo privados condizentes com uma abordagem biográfica convencional.
E como se não bastassem, a estes somam-se outros fatos que tornavam ainda mais complexa a tarefa de criação da peça: Borges tinha um histórico de apoio à ditadura de Videla na Argentina e de Pinochet no Chile. Descendente de militares, orgulhava-se de seus ancestrais e odiava o comunismo. Consta que mudou sua posição quanto à ditadura argentina após ser procurado por duas mães de desaparecidos políticos, mas sua notoriedade nunca deixou de ser associada a uma perspectiva de direita, independentemente do reconhecimento de seu mérito literário.
O que se colocou inegavelmente no centro de interesse para a criação da peça de Samir Yazbek foi, portanto, o fato de Borges ter feito de suas leituras, e do próprio ato de ler, a matéria por excelência de que era constituído seu trabalho, e não a história de sua trajetória autoral.
II
Quando o poeta Paulo Leminski publicou “Distraídos venceremos”, livro de 1987 de que faz parte o poema “Ler pelo não”, ele fez constar da edição uma pequena introdução comentando o que lhe parecia ser, nesse trabalho, a realização de uma meta há muito almejada: “arrisco crer ter atingido um horizonte longamente almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação”. O poema é o seguinte:
Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América.
Paulo Leminski, Distraídos venceremos
“Referência”, no estudo teórico de literatura, é tudo o que expressa ou assinala no texto a existência concreta da realidade exterior em sua materialidade. Para Leminski, uma vez rarefeita (ou seja, diluída, tornada menos ostensivamente explícita), a referência deixa uma ausência, ou seja, um vazio físico ou sonoro em seu lugar, mas a realidade que ali teria sido referida, “evidentemente”, não desaparece, e cabe ao leitor o desafio de ler, pela lacuna, aquilo que se rarefez.
Leminski chama isso de “ler pelo não”: enxergar além das letras no papel e além das palavras compondo sentidos. A pedra, que é palpável e concreta, pode ser “vista” na rima, que não se pode tocar. A forma poética pode se esvaziar e se perder, e ficar existindo em suspensão, à procura ou à mercê de outros conteúdos, de outros “etceteras”, de outras possibilidades latentes que a preencham.
Ler é um ato na contramão da linearidade e da explicitude: ele desmancha, trespassa e contraria o que está aparentemente exposto e ordenado no texto. A matéria (o texto escrito e lido) tem ritmos e tem também um “dentro” e um “fora”, espaços que são o melhor lugar possível de observação um do outro.
“Navegar em direção às Indias” é guiar-se por uma carta prévia de navegação, fruto da experiência e da determinação aplicada, mas “descobrir a América” resulta do susto perceptivo imposto pelo imprevisível.
Sempre há desafios aguardando o leitor em cada ato de leitura. Este, seja qual for o gênero lido, pede sempre, em alguma medida, que se encare tudo isso com o prazer descomprometido mas empenhado de quem degusta.
Quando se trata de leitura de poesia, os desafios estão em seu habitat natural: a poesia é o lugar da rarefação das referências, das lacunas de percepção, das impressões que tateiam passo a passo o fio tenso esticado sobre o abismo na travessia à procura do sentido.
Quando, porém, se trata de dramaturgia, e justamente de dramaturgia criada a partir de uma obra literária construída, por sua vez, com a projeção simbólica de leituras do ficcionista, tudo muda de figura: os desafios, assim como as lacunas e rarefações a serem preenchidas, redobram-se.
III
A carpintaria dramatúrgica e cênica de “Um outro Borges” remete fortemente ao conto intitulado “O Aleph”, que dá nome a uma antologia de 17 outros. Aleph, primeira letra do alfabeto hebraico, designa o ponto simbólico de conexão entre o céu e a terra, mas no texto ficcional do escritor ele é um dos pontos do espaço que contém em si a totalidade dos demais
Como nessa imagem, algo semelhante ocorre na peça: o presente abordado transforma-se numa espécie de Aleph cênico do Borges trabalhado na dramaturgia: em princípio ele apresenta o momento em que o escritor, preparando-se para viajar para a Suiça, é notificado da iminente demolição de sua casa e de outras das redondezas para que sejam realizadas obras de expansão de uma das linhas do metrô. Logo a seguir esse presente se ramifica em momentos estratégicos e não lineares do passado. Estes, na verdade, são ocorrências cênicas transtemporais e algumas vezes intrasubjetivas desencadeadas por memórias e pensamentos do Borges personagem.
É a partir desse presente que o Borges cênico de Samir Yazbek, designado como Escritor, interage com personagens diversas: a Mãe, a Governanta, o Engenheiro encarregado das obras do metrô (ironicamente ex aluno do Escritor), a Jovem, a princípio renitente em aceitar percorrer os labirintos literários da biblioteca, a Mulher, síntese dramatúrgica da presença afetiva e emocional feminina na vida do Escritor, e o Filósofo, projeção imaginária do álter ego que dialoga com Borges, que o instiga e o questiona.
Samir tomou o cuidado de não configurar essas personagens com expedientes estritamente associáveis a pessoas diretamente inspiradas na biografia de Borges. Isso deu maior fluência às interações cênicas, e maior representatividade às conexões estabelecidas entre os tempos. O próprio Borges cênico é acima de tudo uma personagem, e não a transposição dramatúrgica fiel do Borges autor. No caso do Filósofo, que é invisível para os demais, as réplicas do Escritor surpreendem os interlocutores presentes, solução cênica que permite expor aos espectadores seu fluxo interno de reflexões.
Não casualmente o Filósofo, visto e ouvido apenas pelo Escritor, acompanha cada passo do andamento dramático quase como um raisonneur, e posiciona-se sempre reflexiva e criticamente em relação ao que está ocorrendo. No caso da Mãe, os diálogos expõem o contraponto à reação do Escritor em relação às mudanças acarretadas pelas transformações urbanas. Há, por parte dele, uma nostalgia amargurada e uma idealização implícita do passado que vai cada vez mais se perdendo.
A Governanta, presença da classe trabalhadora no interior do lar burguês da família Borges, dá ensejo a uma remissão importante às Mães da Praça de Maio e ao movimento de denúncia da tortura e de luta contra a ditadura militar. É fundamental ressaltar que é na interação com ela que o Escritor toma conhecimento da terrível situação política do país.
No segmento final a ênfase dramatúrgica e cênica recai sobre a Jovem: em algum ponto do labirinto incomensurável da biblioteca existe um Aleph e a destruição dele fará que seja destruído todo o acervo incontável de obras que são o conjunto do conhecimento e da arte. Está nas mãos dela, simbolicamente, adentrar o labirinto, percorrê-lo à procura do Aleph e assim permitir que o legado inestimável sobreviva.
A composição de imagens cênicas parece construir a esta altura uma espécie de culminação, quase uma epifania. O dramaturgo, neste ponto de encerramento, escolheu o caminho compositivo mais ingrato, fruto de sua enorme paixão pela peça. Esta, com todo o seu vigor dramatúrgico, tenta equilibrar-se sobre uma lâmina de dois gumes: um deles é o do lirismo épico, que não perde de vista o fio da meada da História e de suas referências implícitas, rarefeitas, mas detectáveis (ditadura, modernização, transformações de sensibilidade, etc) e o outro é o da Alegoria trans histórica que coloca nas mãos da Jovem, na cena final, o poder de optar por uma redenção salvadora da Cultura. De uma Cultura entendida como o grande legado humano a ser preservado. Na era de culturas midiáticas em que estamos, essa perspectiva, com seu inegável cerne de reverência conservadora à tradição, consegue, com o empenho dramatúrgico de Samir, colocar-se como um viés de resistência diante do desmonte mercadológico avassalador que predomina por toda parte.
IV
Se o poema de Leminski puder nos inspirar, a leitura “pelo não” apreendida dele nos ajudará, a esta altura, a atentar para o título da peça, “O outro Borges”: nas referências implícitas ao longo dela existe um Borges que não é apenas o notável escritor, o nome central do cânone ficcional latino americano e do realismo fantástico, o criador de imagens labirínticas e trans históricas: é aquele que se dá conta das mudanças impostas pela ditadura sangrenta, pela tortura, pelo assassinato de toda uma geração pranteada pelas mães da Praça de Maio. Esse é o Outro da peça, a referência tênue, mas presente e que pode ser lida, como diz o poema, “além da letra”.
Que fique então como registro ilustrador disso o texto “O outro Borges”, que o próprio escritor incluiu em seu livro “O fazedor”, e que transcrevemos a seguir:
Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um vestíbulo e o portão gradeado; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome em uma lista tríplice de professores ou em um dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica. Não me custa nada confessar que alcançou certas páginas válidas, mas estas páginas não podem salvar-me, talvez porque o bom já não seja de ninguém, nem mesmo do outro, mas da linguagem ou da tradição. Além disso, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou cedendo-lhe tudo, embora conheça seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu permanecerei em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso rasqueado de uma guitarra. Há alguns anos tentei livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei que imaginar outras coisas. Assim minha vida é uma fuga e tudo eu perco e tudo é do esquecimento, ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página.
[Conto de “O Fazedor” (tradução de Josely Vianna Baptista), incluído em “Jorge Luis Borges – Obras Completas II”, Editora Globo]
SOBRE O ESPETÁCULO
Todos os detalhes captados e registrados dramaturgicamente por Samir Yazbek a partir do trabalho literário de Borges estão sugestivamente presentes no palco da montagem dirigida por Marcelo Lazzarato. O espaço cênico (com cenografia de Simone Mina) é ocupado com os elementos funcionais mínimos necessários para sugerir o espaço interno da casa da família: uma mansão que já pertence aos Borges há mais de uma geração, e que abriga também a biblioteca e simbolicamente o Aleph localizado nela.
A amplidão vertical do palco não é fortuita: ela parece transmitir ao espectador a noção de que, acima daquela casa, agora ameaçada de demolição para expansão do metrô, paira uma dimensão maior, densamente povoada de sentidos e de associações simbólicas. Não há áreas de sombras, mas há, nessa verticalidade espacial mencionada, nuances de cor em que a luz (trabalhada por Guilherme Bonfanti) compõe uma atmosfera quase onírica.
O elenco desenha com sobriedade, mas também com clareza de inflexão e de interação cênica, as características de cada personagem nos diálogos e nas demais interações: a delicada elegância crispada e reflexiva de Borges (Marcelo Airoldi), o vigor amoroso e fortemente matriarcal da Mãe (Lillian Blanc), a onipresença questionadora e crítica do Filósofo (Dagoberto Feliz) que só o Escritor vê e escuta, a praticidade rústica do Engenheiro peronista (André Garolli), que no entanto é ex aluno do Escritor e o admira, a sensibilidade prática e sábia da Governanta (Luciana Carnielli), presença e voz da classe trabalhadora, a proximidade discreta mas afetiva da Mulher (Heloísa Cintra Castilho), e finalmente a interação decisiva com a Jovem (Chiara Lazzarato), cuja percepção pensante em formação levará à opção final que deverá garantir a sobrevivência simbólica do Aleph em sua significação borgiana.
A moldura musical que abre e encerra o espetáculo foi escolhida e aplicada pelo diretor Marcelo Lazzarato, e é tomada ao sinfônico e solene Requiem não litúrgico de Brahms. A escolha não poderia ter sido mais sugestiva e perturbadora no sentido de ativar referências latentes à obra de Borges, e mais especificamente ao conto “Deutsches Requiem”, de 1946 , que se encontra no volume intitulado “O Aleph”. Nele Borges aborda o tema da confrontação política da consciência de um personagem, ex subdiretor de um campo de concentração, consigo próprio às vésperas de sua execução. As palavras finais do conto, narrado em primeira pessoa, reverberam como uma assustadora, aterradora e sombria “referência rarefeita” presente nos minutos finais do espetáculo. Uma referência da qual Lazzarato soube extrair o que era necessário: a força e a sugestividade musical de seu belo espetáculo.
Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.