Ser criança é um recreio sem fim. Essa frase da peça O Menino Maluquinho, em cartaz de graça no Sesi da Paulista até o fim do mês, é a que define tudo – o livro de Ziraldo na qual foi baseada (lançado há nada menos do que 45 anos), a livre adaptação do craque Marcelo Romagnoli (já assinando sua 38.ª criação), sua linha bem demarcada de direção, o ‘pique’ de atuação do grupo (a veterana Cia. Nau de Ícaros, com 33 anos na estrada), enfim, tudo o que se vê no palco – e se sente no coração – está contido nessa frase. Afinal, o menino não era maluquinho, era apenas e tão somente um menino feliz. Nada melhor do que contar sua história como se ela fosse uma incansável hora do recreio.
Se você quer saber se o personagem tão emblemático vai aparecer de panela na cabeça, sim, já fica logo respondido. Isso acontece na última cena, uma homenagem incrível e tocante ao adereço que virou um símbolo de felicidade na infância, como gosta de dizer o autor e diretor do espetáculo. Romagnoli praticou no palco, cena a cena, o que o livro sugere página a página: “Perigoso mesmo é viver parado!”.

Trabalhar pela segunda vez com a Cia. Cênica Nau de Ícaros fez o diretor aperfeiçoar o que é justamente o “jeitão de ser” desse grupo: não ficar parado. A Nau é referência na criação de espetáculos que utilizam a linguagem do circo contemporâneo em diálogo com a dança, o teatro e o vídeo. Eles sempre pedem a quem for dirigi-los uma pegada que cultue o risco, já que recheiam suas atuações de números aéreos e acrobáticos. Romagnoli deu, de novo, o que eles pediram: frio na barriga e nada de ficar parado.
A estrutura do espetáculo segue uma cartilha bem esquemática, como acontece quando as companhias querem ‘encaixar’ na dramaturgia seus dons artísticos específicos. Aqui, no caso, como já se mencionou, tratava-se de valorizar a dança e os números aéreos. Pois um dramaturgo ‘bem mandado’ sabe obedecer muito bem. O ‘esquema’ que Romagnoli pôs em prática, portanto, é assim: uma cena, uma coreografia, uma cena com diálogos, outra coreografia, mais um momento dialógico, outra dança… e assim vai até o final.

Nunca houve tanta dança em um espetáculo de Marcelo Romagnoli – no sentido de que parece mesmo um espetáculo de dança entremeado por alguma dramaturgia. A felicidade aqui é que essa ‘alguma’ dramaturgia é tecida com clássicos da lavra de Ziraldo, e não só O Menino Maluquinho, como também Uma Professora Muito Maluquinha, entre outros livros. A consistência do texto existe, acrescida da expertise do adaptador, de forma que o casamento com a sempre incrível expressividade da dança fica bem fornido, pleno, encorpado, abundante. Gordo de intenções, estofado de sentidos.
As coreografias se favorecem pelas boas escolhas da ficha técnica, ocupando os espaços lúdicos dos cubos metálicos vazados criados pela cenografia (Estúdio Bijari), bem como adornando-se pelos generosos desenhos de luz de Wagner Freire e se embalando na trilha original irretocável de André Abujamra e Antonio Pinto (filho de Ziraldo). São todas assinadas por Érica Rodrigues, também no elenco e idealizadora do projeto, e invariavelmente são cenas introduzidas no “roteiro” do espetáculo (por assim dizer) por textos criados especificamente com essa função, chamar para a dança seguinte. Algumas transições são menos sutis do que outras. Por exemplo, fica claro que vem dança depois que a Professora voadora diz: “Tem certas coisas que as palavras não explicam. Vou mostrar.”

Mas mesmo com essas intenções facilmente detectáveis na estrutura do texto, ele não perde a fluência em nenhum momento. Eu chamaria até de uma fluência encantatória, que enreda igualmente adultos e crianças em um véu invisível de saudosismo e lirismo. Contribui muito para isso a feliz e luxuosa presença no elenco de Leopoldo Pacheco, alinhavando tudo em tom memorialístico, erigindo em corpo de afeto um Maluquinho adulto, como se fosse o próprio tempo a passar pelo palco personificado com tanto talento. Pacheco tem credibilidade e magnetismo. Com voz cadenciada, sabe empregar o tom amoroso na medida certa, sem pesar no pieguismo que o próprio texto por si só sabiamente já evita. A cena em que Maluquinho criança (o ator Yudchi) e o adulto (Pacheco) se cruzam no palco, com a presença do pai, é de uma beleza inesquecível, muito bem desenhada, marcada, escrita. Uma dança de corpos que vencem o tempo e se esbarram comoventemente. “Sabia que a Lua evapora a tristeza?” – surge essa pérola no meio do diálogo. E quem resiste a “Você vem comigo?” – “Mas estou sempre com você!” Em outras palavras, toda vez que o adulto balança o menino me dá a mão, como escreveu outro poeta. Realmente “inventar’ um Maluquinho adulto e vesti-lo com a pele de um ator tão acertadamente escalado – eis o grande achado/trunfo da adaptação.

Outra sagacidade foi homenagear Ziraldo com referências visuais a seus traços, contornos e grafismos. Todos que já leram ou ao menos folhearam seus livros reconhecem essas citações, como a esperteza de reproduzir na tela, com os mesmos formatos de letras dos livros de Ziraldo, interjeições e efeitos sonoros onomatopeicos como Blá! Bla! Blá!, Aeeee!, Zapt! ou Rrringg! Fazer a cena do cemitério como teatro de sombras também remete inteligentemente ao preto-e-branco das ilustrações do escritor-desenhista. A ambulância em 2D nada mais é do que outro tributo ao ilustrador brilhante que foi Ziraldo. E que requinte cenográfico mais surpreendente, quando a ponta do telão de pano, que serve de suporte branco para as projeções, de repente se dobra e vira um fantasma!
Por retratar um protagonista na faixa dos 7 anos de idade, o texto da adaptação foi muito preciso e acertado em, algumas vezes, entregar-se (quase render-se) – sem pudor – ao humor bem pueril (a chuva que vai molhar a paçoca do lanche) ou ao didático muito básico (os nomes de legumes na cena da cozinha). São momentos que podem parecer bobos, mas têm sua coerência no todo do espetáculo e, sobretudo, na formação de uma menino feliz.

O futebol da infância não poderia faltar, claro. Arrisco dizer que, a despeito da quase obviedade de incluírem uma coreografia com bola, o futebol permitiu que se realizasse talvez a melhor cena do espetáculo, no sentido de ser a que melhor brinca com a união entre a dramaturgia e as habilidades aéreas da companhia. É a cena síntese desse casamento. Refiro-me ao momento do “goleiro voador”, que vira uma catarse na plateia, uma felicidade cênica de se lembrar para sempre. A criatividade fica evidente e nos comove pela simplicidade e eloquência. O goleiro que voa é Ziraldo, é Nau de Ícaros, é Romagnoli, é esperança, é Brasil, é infância. Uma linda tradução cênica da força de um esporte nacional no imaginário de um povo – gente que, desde muito cedo, acredita que um voo de goleiro pode salvar o mundo. Gente que, diante de uma bola, vai reagir sempre como um menino feliz.
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