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Foto: Pino Gomes
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“Nosso Irmão” transita entre o melodrama e a comédia dramática para tratar de questões latentes sem pressão

Sob a direção de Dan Rosseto, a peça escrita pelo espanhol Alejandro Melero subverte o debate comum sobre o autismo e os conceitos de independência de cada pessoa

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Ator, diretor e dramaturgo, o paulista Dan Rosseto, de 44 anos, despontou na cena teatral na década de 2010 com trabalhos que destacaram o seu talento autoral. Nas peças Manual para Dias Chuvosos (2014), Antes de Tudo (2015) e Nunca Fomos Tão Felizes (2019), todas escritas e encenadas por ele, o artista criou histórias em torno de personagens sólidos e psicologizados que ganhavam força conforme o andamento dos textos, mesmo que seus pontos de partida não fossem tão surpreendentes.

A mesma observação pode ser aplicada ao espetáculo Nosso Irmão, original do dramaturgo espanhol Alejandro Melero, lançado em 2012 em seu país, que, depois de versões no Uruguai e no Peru, chegou ao Brasil sob a direção de Rosseto. A premissa é recorrente nos palcos e nas telas – irmãos de personalidades distintas e interesses destoantes que, depois da morte dos pais, se reencontram. Desta convivência forçada, vem um acerto de contas que ultrapassa a partilha dos bens materiais e culmina na reorganização dos afetos perdidos.

No caso de Nosso Irmão, é no desenho dos três protagonistas que se revela a qualidade da dramaturgia, trazendo à tona discussões que vão além do óbvio e atingem temas relevantes, como a inclusão e o machismo, sem que estas bandeiras se sobreponham à ideia inicial – o reencontro dos irmãos. Na trama, quem morreu foi a mãe, e o testamento exige que, para usufruir do dinheiro, os três filhos precisam se unirem. Esta foi a forma encontrada pela matriarca de proteger Jacinto (papel de Bruno Ferian), o filho caçula, que convive com o transtorno de espectro autista (TEA), o único que ficou ao seu lado até o fim em um vilarejo do interior da Espanha e que, na sua percepção, teria dificuldades de viver sozinho.

A primogênita Teresa (interpretada por Regiane Alves) é excessivamente prática, foge de qualquer tipo de sentimentalismo, dona de um caráter quase duvidoso. Foi endurecida pela vida e teve pouco direito de escolha porque lida com um marido autocentrado e cuida de cinco filhos. Teresa, no entanto, está endividada e disposta a botar a mão no dinheiro da mãe. Só não cogita sob hipótese alguma cuidar do irmão, condição para receber o benefício.

Quem vende um sucesso de fachada é a irmã do meio, Maria (representada por Marina Elias), que vive solitária em Madri e, frustrada no sonho de ser escritora, explora o sensacionalismo em torno de famílias desajustadas no programa vespertino de televisão em que trabalha. Para ela, que ficou ausente nos últimos anos, o retorno à cidade em que foi criada, evidencia o seu fracasso ao lidar com os traumas de não ter consolidado um relacionamento amoroso e o medo de ter filhos. Se a repulsa de Teresa em relação a Jacinto é mais fútil, Maria, embora se finja de neutra, em seus dramas interiores, enxerga causas de maior complexidade no distanciamento às origens.

Ao contrário do que todos imaginem, Jacinto é o mais bem-resolvido do trio e, satisfeito com a rotina que leva no interior, sequer cogita a ideia de se mudar para junto das irmãs. Caberá a ele, segundo determina o testamento, definir qual das duas será beneficiada com as economias deixadas em uma conta bancária e essa decisão, em uma compreensão inicial de Teresa e Maria, representaria aquela que ficaria responsável pela tutela do rapaz. Jacinto, no entanto, não tem nada de bobo e, ciente da capacidade de firmar as próprias escolhas, faz as irmãs enxergarem que são elas quem devem reorganizar as próprias vidas.

A questão do transtorno de espectro autista apresentada por Jacinto aparece como um bem-vindo debate de inclusão social. A dramaturgia surpreende ao colocar o personagem como o condutor dos acontecimentos e mostrá-lo tão ou mais independente que as irmãs. Em momento algum, entretanto, a abordagem da deficiência intelectual aparece carregada de um discurso engajado que possa afastar o público do entretenimento ou o obrigue a reflexões que não esteja disposto.

É dessa mesma forma que entra em discussão o retrato feminista na sociedade através dos diferentes estilos de vida empreendidos por Teresa e Maria. A primeira é o tipo de mulher que seguiu um caminho óbvio e não subverteu regras. O namorado de adolescência, conhecido nos arredores de sua casa, virou o marido e pai dos seus filhos. Alimentando uma estrutura machista, ele focou na sua carreira acadêmica e mal sabe esquentar um prato de comidas no micro-ondas quando a mulher se ausenta para o enterro da mãe. Dirão que é um exagero em 2024? Não, não é…

Maria, por sua vez, perseguiu seus sonhos e fez o que bem entendeu na juventude. Se conseguiu realizá-los são outros quinhentos. Focou demais na carreira e, como muitas mulheres de sua geração, fugiu de envolvimentos sentimentais até para não encarar os próximos prováveis passos de um relacionamento, como a maternidade. O desprendimento em relação à vida afetiva passa a ser questionado pelos irmãos. Enquanto Teresa não se conforma que a irmã ainda more de aluguel e não conheça uma estabilidade sentimental, Jacinto enxerga em Maria uma aliada mais provável porque percebe seu apego às memórias do passado.

É curioso verificar como o olhar de dramaturgo aperfeiçoado por Dan Rosseto ao longo dos anos foi fundamental para guiá-lo como encenador. Ele se mostra um diretor respeitoso e preocupado ao máximo para não descaracterizar o original, seja nas situações dramáticas ou no desenvolvimento dos personagens. A preservação da ambientação da trama na Espanha, com citações às cidades, costumes e até características comportamentais dos personagens, não provoca um distanciamento do espectador, pelo contrário, evita alterações desnecessárias que possam resultar em adaptações artificiais.

As referências latinas embutidas na dramaturgia de Alejandro Melero embasam Nosso Irmão como um representante do melodrama, mesmo que sob a embalagem de comédia dramática. O gênero, carregado de situações de grande carga emotiva e uma dramaticidade exagerada, é revisitado sob uma ótica moderna e nada pejorativa. Desde os anos de 1970, quando o experimentalismo se impôs como modelo de teatro e o melodrama passou a ser desprezado, as emoções aparecem disfarçadas por um relativo humor e, nesta peça, é uma constante. Em uma das cenas mais tocantes, os três filhos saboreiam os últimos pedaços de um bolo deixado pela mãe, um daqueles sabores que habita a memória afetiva. A conclusão da cena, porém, caminha para uma pirraça infantil de Jacinto e Maria contra o mau humor de Teresa.

O bom senso para equilibrar o melodrama e a comédia dramática levou Rosseto a compartilhar emoções entre o elenco de acordo com as características próprias de cada um. A composição de Bruno Ferian, a mais delicada delas, apresenta um visível cuidado e, por isso, escapa de exageros mesmo nos momentos em que Jacinto arranca risos da plateia com tiradas típicas de um irmão caçula e provocador. O fato de Ferian ser um rosto pouco conhecido colabora para esse diálogo. Os estereótipos em relação ao personagem são facilmente descartados a partir do momento em que os conflitos de Teresa e Maria se tornam tão fortes e contraditórios que colocam os três protagonistas no mesmo patamar dramático.

Regiane Alves e Marina Elias não precisam se esforçar tanto para dar credibilidade aos problemas de suas personagens. As duas recorrem a um naturalismo que, em alguns momentos, parece excessivamente carregado, como uma empostação de voz exagerada e gestos fartos, mas, por outro lado, fica nas mãos delas o caráter melodramático da história. Conhecida por personagens antipáticas na televisão, Regiane começa a peça repetindo o perfil para, aos poucos, humanizar Teresa e, enfim, expor fragilidades e desenhar uma redenção pessoal. Marina, por sua, tem um papel mais difícil, é a irmã neutra e não pode pesar a mão porque seu sofrimento esbarraria facilmente na frivolidade. Ela caminha para uma subjetividade, uma trilha de delicadeza que funciona, e o melhor exemplo é a cena em que coloca um vestido da mãe e, meio enigmática, faz dele o seu figurino.

Nosso Irmão é um tipo de espetáculo que parece ter sido esquecido por produtores e artistas, aquele que conta uma história de fácil compreensão e se esforça para satisfazer o público que saiu de casa e pagou um ingresso. Quebra, no entanto, um grande tabu que pode ser levantado pelos mais críticos. Nada ali é frugal ou simples. Questões latentes são postas em discussão e aprofundadas de maneira inesperada. A diferença, porém, é que esse debate não é o centro da narrativa.  A dramaturgia é sustentada pelos personagens e tais questões comportamentais atravessam as histórias de cada um deles, sem teorias ou lições de moral, mais ou menos como na vida real de quem escolheu se sentar naquela plateia.

Foto: Pino Gomes

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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