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O encontro de Nietzche com o grupo teatral Tá Na Rua

Coluna Por Natália Beukers

Teatro: manifestação que acontece entre os que estão presentes em determinado tempo e espaço. Entre atores, entre ator e público, entre cada espectador. Não apenas o que se vê, mas o que se sente. Caso você – leitora, leitor –, alguma vez, tenha testemunhado essa sensação, sabe do que estou falando… momento sublime, sutil realidade.

A partir das inspirações que resultaram no processo Zaratustra: uma transvaloração dos valores, a filósofa Viviane Mosé e o diretor do grupo Tá Na Rua, Amir Haddad, disseram, em melhores palavras, o que estou tentando transmitir:

“Não se trata de momento individual. Ou nos salvamos todos, ou estaremos todos perdidos. Vivemos em época que a salvação individual é pregada e alimentada a ferro e fogo, fala-se muito: ‘Salve-se quem puder!’. Mas você não é capaz de se salvar se o mundo a sua volta estiver condenado”, explicou Amir.

O espetáculo nasceu da relação do ator e diretor com a personagem Zaratustra, escrita pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Viviane e Amir, em comunhão com mais oito atores, construíram o processo do espetáculo que reestreou no Rio de Janeiro neste mês de novembro. O lema do grupo carioca é: dramaturgia sem literatura, ator sem papel e teatro sem arquitetura. Amir brincou: “Ou seja, o teatro Tá Na Rua é nada. Mas é tudo.” E Viviane rebateu: “Eles se jogam no nada.”

Viviane Mosé e Amir Haddad contam tudo sobre as inspirações que deram origem ao processo Zaratustra: uma transvaloração dos valores, em curtíssima temporada no Rio de Janeiro. Confira a seguir:

Amir Haddad: O processo deste espetáculo surgiu quando minha querida amiga e atriz Camila Amado (1938-2021) entrou em minha casa, no morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, com um livro grosso na mão: Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Ela jogou o exemplar em cima de mim e disse: ‘Desce o morro Amir, desce o morro’. Estava em um momento profissional bastante parado, a vida difícil, o Brasil passando por muitas turbulências… quando peguei o livro para ler, na primeira fala da personagem Zaratustra, já estava aos borbotões entendo o que Camila estava querendo me dizer. É gritante minha identificação com o pensamento Nietzschiano, como nunca poderia imaginar.

Viviane Mosé: A história do teatro Tá Na Rua tem tudo a ver com o que Nietzsche pensava.

AH: Exatamente… não somos caudatários do pensamento Nietzschiano; longe disso. No entanto, a contribuição de sua filosofia para o entendimento daquilo que faço é gigantesca. À medida que o entendi, fui ficando incrédulo: “O que é isso! Nietzsche andou me bisbilhotando?”. É espantoso o número de pontos convergentes entre nossas ideias. Em relação ao meu teatro, sempre procuro ter uma cabeça terrena, isto é, que nos faça entender o sentido da Terra e nos coloque de pés no chão, no presente. O ator, antes de querer ser algo, ele precisa estar.

VM: Isso é Nietzsche puro! Nietzsche é um crítico, antes de tudo, do verbo ser. A Filosofia nasce do ser, dessa essência abstrata, o princípio de todas as coisas. Algo único, imutável. Mas Nietzsche diz não a essa ideia. Para ele, não há princípio, a vida sempre existiu e existirá. Não há identidade, tudo é mudança, o que existe é o estar. Quando pautamos nossas vidas no ser, nos idealizamos, enquanto quando pautamos apenas no estar, realizamos. O teatro de Amir sai do ser, da interpretação perfeita, do gesto ideal – isso vem da idealização do grande teatro – e vai para o corpo, no agora. A base do grupo Tá na Rua é o movimento, a dança, não a representação.

AH: Chegar a isso parece ser um trabalho simples, mas não é. Trabalha-se muito com os atores para que parem de tentar ser e comecem a estar. Meu trabalho é a demolição dessa construção metafísica que é um ator em cena.

VM: Amir, você é danado! Nietzsche diz que é o filósofo do martelo, acredita? Mas a questão está dada… não sabemos de onde viemos, para onde vamos, mas sabemos o que nos fortalece: o corpo, o chão, a base. Nós não somos filhos do céu, mas, sim, da Terra. É isso que Amir sempre frisou a partir de seu teatro, e é isso que trazemos no espetáculo Zaratustra: uma transvaloração dos valores. As pessoas entram em delírio! É um ritual, resgata-se a experiência do teatro enquanto cura. E Amir Haddad é o mago de todo esse movimento!

AH: É importante dizer que o público nunca fica isolado neste espetáculo: assim como os atores estão, o público também está. É uma interação permanente, de extrema horizontalidade. A proximidade é absoluta, tudo misturado. Uma experiência para quem faz e para quem assiste.

VM: São nove atores em cena, que se revezam entre as personagens, não pelo efeito que isso possa trazer ao público, mas pela essência do que significa; não há a “minha personagem”. Há apenas um personagem fixo, o velho, pois ele tem muito texto. As outras personagens variam o tempo todo: todo mundo pode fazer tudo. Logo, a cada noite, temos um espetáculo diferente. No Tá Na Rua não se estuda a forma, mas o conteúdo.

VM: O que nós buscamos é trazer, para o Brasil, um pensamento contemporâneo, mais vivo e corajoso sobre a vida. Queremos muito fazer este espetáculo no Brasil inteiro, especialmente seguindo a tradição do grupo Tá na Rua: ao vivo, gratuitamente, em espaço público. O que queremos é exercer a vida no palco, nosso objetivo é produzir vontade de viver. Vocês, jovens, não têm ideia do que é esse país em sua pulsão… isso pode voltar a existir, prepare-se!

AH: Nossa ambição é expandir, isso porque sabemos que podemos fazer muito mais, mas precisaríamos de melhores condições de trabalho para isso. Se tivéssemos melhores condições, não tenho a menor ideia do que já poderíamos ter feito. Pois o trabalho não tem limite, é movimento permanente. Estar em cena é mais do que apresentar um resultado estético ou artístico; é um exercício permanente de renovação, de vida. Não quero teatro em minha vida, quero vida em meu teatro. Quando vamos para o teatro, vamos para vivenciar uma experiência vital, da maior importância, envolvendo o passado, presente e futuro. Não há contemporaneidade sem ancestralidade. Eu detesto o moderno, o moderno nasce velho. Detesto a vanguarda. Quando um ator do Tá na Rua entra em cena, não entra um indivíduo, mas o ser humano, com toda sua História.

VM: O espectador entra para assistir à peça em sua individualidade e sai regado de ancestralidade. Entra-se pensando nos boletos a serem pagos, no fora do amor de sua vida… tudo isso é natural. Mas, aos poucos, o espectador entra em comunhão com a ancestralidade e ele vai lembrando que a vida é muito mais que a civilização, existe algo maior. A ancestralidade nos vincula… a plateia sai muito feliz, renovado. Estamos muito seguros do resultado – até um pouco metidos. Mas, brincadeiras a parte, digo isso, pois realmente tivemos um retorno inacreditável do público.

AH: Se for assistir, vai ficar boba. Vai se perguntar: “Ué? Mas cadê tudo aquilo que falaram?”. Não tem cenário, não tem figurino, não tem nada… nada a ver com o Zaratustra. Mas, dali a pouco, você está em viagem… porque o teatro te leva. Queremos ganhar o mundo. O Brasil está precisando dessa alegria. E realmente podemos fazer em espaços que caibam muitas pessoas – mas para isso é preciso que o poder público nos contrate. Até agora – desde os últimos anos, todo movimento artístico era resistência, mas, daqui para frente, gostaria que começasse a ser proposição.

***

Em 45 anos de vida, o grupo Tá na Rua nunca recebeu qualquer investimento público. Há, somente, uma casa na Lapa – cedida em comodato durante governo Brizola. Conforme explicou o diretor Amir Haddad, a especialidade artística do grupo – traçada durante a entrevista transcrita acima – não costuma ser contemplada com estímulos para a vida cultural:

“Nós nos ressentimos muito dessa falta de apoio, mas nunca mudamos, nem mudaremos, o que somos e o que fazemos para ganhar qualquer dinheiro.”

E, ainda, finalizou:

“Uma personagem da peça A Vida de Galileu, de Bertold Brecht, diz assim para Galileu Galilei: “Meu caro Galileu, seu problema está em sua especialidade, por isso não tem apoio, não tem nada. O senhor quer saber por que uma pedra cai, enquanto todos os outros estão interessados no porquê ajoelhamos…” *. Ele nunca teve apoio, mas nunca desistiu. A humanidade mudou de rumo depois de sua existência. Para mim, o comportamento de Galileu é um exemplo.”

Para saber mais informações sobre o grupo Tá Na Rua, peças em cartaz, eventos da companhia como Cabaré tá na rua, basta entrar em contato pelo perfil do Instagram @grupotanarua.

Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.

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Sobre
Natália Beukers

Natália Beukers

Atriz, criadora do Infoteatro e colaboradora de Cultura da Vogue Brasil, tendo escrito mais de 50 textos até então. Formada em Direito pela PUC-SP (2020), começou a estudar teatro aos 10 anos de idade, formando-se como atriz em 2017. Estudou, de 2017 a 2021, com os atores do Grupo TAPA, participando de três espetáculos do grupo: “Anatol”, “O Jardim das Cerejeiras” e “Um Chá das Cinco”. Foi assistente de produção em mais de 10 temporadas da companhia. A partir da criação do Infoteatro, em abril de 2020, entrevistou mais de 100 profissionais da área teatral.

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