E lá vamos nós para mais um espetáculo sobre o malfadado bullying nas escolas, a luta pela aceitação das diferenças, a necessidade de valorizar pluralidades neste mundo tão intolerante e cada vez mais propenso a retroceder nas duras conquistas humanistas. Sim, crianças precisam conviver com esses temas com bastante frequência e desde cedo, para que tenhamos alguma esperança de um mundo melhor em um futuro próximo. O teatro tem se prestado bem a ser veículo dessa missão.

O Menino de Lugar Nenhum, do grupo paulistano Teatro de Panela, investe nessa temática já considerada batida e desgastada, lançando mão principalmente de estética. É um espetáculo muito mais atraente por seu visual e suas tentativas de ser simbólico na cenografia, no visagismo e nos figurinos do que pela força da dramaturgia e do texto. É uma opção a ser respeitada e que funciona bem, orquestrada com competência pelo diretor convidado, Ivan Parente.

Não que o texto (coletivo) deixe a desejar, não é isso. É cuidadoso, bem trabalhado, alternando humor, aventura e emoção. Mas não chega a ter momentos brilhantes e impactantes. Não chega a surpreender ou cativar. A dramaturgia foi pela via do simplismo pouco aprofundado. Meu termômetro para saber se um texto é nota dez é procurar identificar se há nele frases explicativas, didáticas, motivacionais. Se há, a nota não é dez. O público pode gostar, mas um crítico acha isso pobre e desnecessário. A “mensagem”, que tanta gente acha fundamental no teatro infantil, na minha visão, deve ser embutida nas ações, sem precisar ser explícita. A criança entende e absorve bem melhor. Fica mais arte e menos aula. Mas aqui cito uma frase ao final da peça: “Aquilo que nos faz diferentes é o melhor de nós.” Pronto, aí é que o espetáculo perde pontos com o crítico. Isso que a frase diz já ficou claro no desenrolar da trama, não precisa ser traduzido e reforçado em palavras, mesmo que seja em letra de música. Vira lição, vira moral da história – e isso é chato e ultrapassado.

Felizmente, a direção de Ivan Parente salva esses poucos deslizes com um bom dinamismo no trabalho dos atores e, como eu disse, valorizando a estética, com momentos belíssimos visualmente, cenas bem desenhadas, marcações vistosas, funcionais e cheias de ritmo. O enredo fala de um menino que nasceu todo colorido em um lugar em que tudo é preto, branco e cinza. Excelente medida foi optar por criar um boneco colorido, quase do tamanho real, manipulado à vista da plateia, para ser o menino diferentão, enquanto todo o restante do elenco (Bruna Izar, Guto Moura, Lívia Lunardi e Baraúnna) é de carne e osso e veste preto e branco. Curiosamente, a opção foi por um boneco sem boca, o que é comum no teatro quando a intenção é transmitir as ações e emoções do personagem por meio da movimentação de seu corpo, não do rosto. O manipulador acaba fazendo com a boca o que o boneco faria se tivesse uma.

Quem é fã dos filmes de Tim Burton vai reconhecer no palco o visagismo tão difundido por esse cineasta em películas como A Noiva Cadáver e O Estranho Mundo de Jack. Uma estética impactante de listras, golas e babados (figurinos de Guto Moura), contrastante com o boneco colorido. Para garantir dinamismo, há momentos em que os diálogos, em vez de falados, são cantados, à moda das operetas. A atraente trilha é assinada por Victor Angerami. Outra forma de dinamizar foi quebrar a quarta parede, interrompendo o andamento da trama para consultar a plateia: Estão achando muito triste? O que fazer agora? O menino deve entrar na máquina do cientista maluco? As crianças vão opinando e se sentindo participantes do enredo.

O espetáculo surgiu durante a pandemia e, de lá para cá, vem galgando espaços e temporadas cada vez mais frequentes, tendo em vista a plena aceitação conquistada pelo público. Estreou em abril de 2021, em temporada online, e já circulou por muitas unidades do Sesc e do Sesi, além de festivais, teatros e centros culturais em diversas cidades. Fez parte da Virada Cultural 2022 e foi apresentada em CEUs de São Paulo. Recebeu oito prêmios no PROFEST 2021, incluindo o de melhor espetáculo infantil, pelo júri técnico e pelo voto popular. Não é pouco.
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