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Foto: João Caldas
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Permeado por questões da maternidade, “Projeto Clarice” traz visão surpreendente da escritora e sobrepõe sensibilidade ao lugar de fala

Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann protagonizam encenação de Cesar Ribeiro, que, em fase profícua, cria o seu melhor espetáculo

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

O grande mérito de Projeto Clarice, espetáculo de Cesar Ribeiro em cartaz no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo, é soterrar qualquer expectativa a respeito dele. Expectativas em relação ao universo da escritora Clarice Lispector (1920-1977) e às constantes adaptações de sua produção literária são revertidas de forma quase chocante.

Expectativas sobre as quatro protagonistas, as atrizes Clara Carvalho, Magali Biff, Mariana Muniz e Vera Zimmermann, se desconstroem por mostrá-las à vontade em uma linguagem nem tão comum aos seus currículos. Por fim, expectativas quanto ao conjunto da obra recente de Ribeiro, que, de tão profícua, já firmou um estilo, surge sob uma inesperado olhar feminino.

Não há nada pejorativo em afirmar que Ribeiro levantou uma montagem feminina de um ponto de vista próprio. Lógico que a parceria com as quatro intérpretes consolidou essa visão já impregnada nos contos da escritora. Quem acompanha, porém, o diretor sabe que suas encenações são extremamente autorais e a base da leitura feminina deve ter surgido através de pesquisas ou inconscientemente dele mesmo, que, além de tudo, nem é pai.

Foto: João Caldas

Por isso, surpreende que Projeto Clarice seja estruturado no conceito da maternidade e, partir da questão, as consequências de um cotidiano sufocante são detonadas. Esse aprofundamento comprova que, tanto ou mais que o lugar de fala, a sensibilidade propicia a um artista a ótica de analisar temas que não necessariamente fazem parte do seu dia a dia. A tese é polêmica, mas pode, em determinados casos, ser repensada, até porque entre as quatro atrizes apenas uma delas é mãe e, sendo assim, um lugar de fala legítimo passaria longe da equipe de Projeto Clarice.

O espetáculo é constituído por cinco cenas baseadas nos contos Via Crucis (1974), Menino a Bico de Pena (1969), A Legião Estrangeira (1964), Amor (1960) e O Ovo e a Galinha (1964). Todos foram publicados em uma fase de maturidade da autora, época que acumulava a experiência de ser mãe e o exercício intelectual. São retratos do cotidiano de mulheres abaladas por epifanias capazes de fazê-las analisar criticamente a existência.

Na dramaturgia costurada por Ribeiro é como se cada história fosse uma sequência da outra. A cena de abertura, Via Crucis, monta um presépio, uma parábola sobre o nascimento de Jesus. Clara conduz a narrativa com Mariana na pele de Maria das Dores, a virgem que, ao consultar uma ginecologista (representada por Magali), se descobre grávida e divide o espanto com José (papel de Vera), o marido focado na leitura do jornal.

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Preocupada com o futuro do filho, Maria tenta fazê-lo escapar do destino da crucificação, e o primeiro passo é batizá-lo como Emmanuel. “Nome simples, nome bom”, pensa. Maria e José rezam, atravessam os meses na expectativa, resolvem fazer o parto em um estábulo. A criança nasce. “Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam”, conclui a narradora, ressaltando a ironia que se acentua no decorrer da montagem.

A seguir, Menino a Bico de Pena se apresenta com um enorme desafio de interpretação. No solo, Vera assume as três vozes, a da narradora, da mãe e do filho, as duas últimas, obviamente, fora da terceira pessoa. Na angústia de se comunicar, uma mulher tenta criar fagulhas de intimidade com o filho pequeno, que oferece pouco mais que gestos, sons, baba e urina.

Para o bebê, é a mesma dificuldade, a de se fazer entender e disposto a tudo para ser amado por aquela que o colocou no mundo.  Menino a Bico de Pena é o mais difícil dos cinco contos para teatralizar e alcança surpreendente fluência, principalmente pela sacada de ordená-lo na sequência de Via Crucis, tendo uma associação entre os esforços da gestação de Maria das Dores e a busca pela cumplicidade com o bebê desta outra mãe.

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Ponto máximo de Projeto Clarice, A Legião Estrangeira é um daqueles momentos para ficar colado na memória do espectador por um precioso entrosamento de texto, imagens e interpretações. Com brilhantismo, Mariana Muniz é a mulher perturbada pelas lembranças das visitas da vizinha Ofélia (papel de Vera Zimmermann), uma garotinha intrometida e cheia de opiniões, que, no passado, quebrava sua rotina, assim como o pinto que ganhou naquela véspera de Natal. “O que valia é que dizia muita tolice também, o que, no meu desalento, me fazia sorrir desesperada”, afirma a personagem de Mariana, sobre Ofélia.

Não à toa Ofélia é interpretado por Vera (ilesa ao risco de cair em estereótipos na composição infantil), a mesma atriz que faz o bebê de Menino a Bico de Pena. Mariana, perplexa e sublime, cresce aos céus diante das reflexões da narradora, enquanto Vera, lúdica, empresta um carisma à Ofélia que faz o espectador compreender o fascínio da mulher pela criança. Entre o distanciamento e a proximidade, o absurdo e a lógica, A Legião Estrangeira ainda deslumbra com a inesperada coreografia protagonizada por Mariana que se casa ao conjunto.

Depois de tanto ritmo, diálogos rápidos e imagens surpreendentes, o conto Amor, um dos mais famosos de Clarice, é inevitavelmente vítima de uma verborragia que reduz o seu impacto. Clara Carvalho é a protagonista, a dona de casa enfastiada que, na volta das compras, vai parar no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Ela não disfarça a instabilidade causada pela visão de um cego mascando chiclete que parecia sorrir infinitamente. A imagem é representada por Magali, Mariana e Vera, de óculos escuros, que atravessam o palco constantemente em uma coreografia lenta vestindo capa vermelha e segurando uma planta.

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Ana é uma representante da tradicional família brasileira. Os filhos crescem saudáveis, o marido é trabalhador, a cozinha da casa bem espaçosa. Parecia que a vida tinha se iniciado com o casamento, e a juventude, a fase de solteira, lhe soava com estranheza. Por que não conseguia, então, rir com a naturalidade daquele homem que, mesmo não enxergando, parecia mais feliz?

Ana, então, fala, fala, fala e, mesmo com o talento e a técnica reconhecidos, Clara não dribla o incômodo do público diante de um excesso de palavras que dificulta a conexão. Entre as cinco cenas, Amor é a que resulta menos impactante, por demorar a estabelecer a sobreposição das imagens diante da narração mais cotidiana e com frestas realistas. Não por acaso foi nela que Ribeiro cavou espaço para uma crítica política.

Bonecos com camisetas da Seleção Brasileira descem à cena quando Ana recebe os irmãos e as cunhadas para o jantar daquela noite. Os ovos já foram quebrados em uma das freadas do bonde e, na obrigação de fazer sala aos homens vestidos de verde e amarelo, Ana compreende a extensão do seu tédio.

Ao som de Eu te Amo, Meu Brasil, sucesso ufanista da dupla Dom & Ravel no auge da ditadura militar, Ana se desfigura, e a verborragia cede espaço à imagem. Clara, que fala com os olhos como poucas, transmite o conflito da personagem sem abrir a boca e, quem sabe, seja questão de tempo para o fogão, que já dá defeito, causar algum estrago.

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Mas, por enquanto, o que resta a Ana no dia seguinte é filosofar sobre o sentido da vida, os efeitos da reprodução e se contentar com a bagunça causada por gemas, claras e cascas. Provocativa e retumbante, Magali Biff protagoniza o último conto, O Ovo e a Galinha, em uma performance que remete ao auge das suas experiências profissionais com os diretores Gerald Thomas e Felipe Hirsch.

“Como o mundo, o ovo é óbvio”, diz a protagonista em sua reflexão metafísica. “Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara”, declara, um pouco depois. A mulher diante do fogão se assume no absurdo de comparar o seu papel de mãe ao do da galinha que choca o ovo e encaixota o seu destino. Magali dá o texto com um distanciamento que só aproxima o espectador, transmite uma loucura capaz de reforçar a lucidez e, conforme quebra os ovos, a personagem recolhe-se ou não ao conformismo. “Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso”, conclui.

Ao desromantizar a maternidade, Projeto Clarice atinge o seu maior impacto – uma questão difícil de ser abordada em tempos em que o teatro costuma ser interpretado como reprodução literal da realidade. Em cada cena, vem a angústia da mulher como replicadora da vida, a violência a que é submetida e, na maioria das vezes, convém fingir-se de cega. O exercício intelectual pode levá-la a uma destruição da idealização difícil de ser assumida.

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Concebido por um diretor que não é pai e apenas uma das quatro atrizes é mãe, o espetáculo foi beneficiado por uma liberdade criativa e de consciência que, alinhada à obra de Clarice, consolidou um fluxo de pensamentos que não encontrou freios comuns a quem gerou ou cria uma criança.

Em ascensão acelerada, Cesar Ribeiro, que começou a fazer teatro em meados da década de 1990 e só ganhou visibilidade em Esperando Godot, do irlandês Samuel Beckett, em 2016, monta, desde o fim da pandemia, um espetáculo atrás do outro calcado em uma energia rara no mercado.

Depois de O Arquiteto e o Imperador da Assíria (2022), do espanhol Fernando Arrabal, e Dias Felizes (2023), nova incursão em Beckett, Ribeiro estreou no ano passado Dias e Noites de Amor e de Guerra e Prontuário 12.528. A primeira foi inspirada nas memórias de exílio do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), enquanto a segunda apontou a violência estrutural desenvolvida no Brasil desde a colonização portuguesa em 1500 até chegar aos depoimentos da Comissão Nacional da Verdade, instalada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2012.

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Em maio deste ano, Ribeiro lançou Trilogia Kafka, que, apesar do título, trazia quatro textos do escritor checo Franz Kafka (1883-1924) ressaltando diferentes tipos de violência em sua obra e o começo para um diálogo com o abuso aflorado em Projeto Clarice. Como encenador, Ribeiro cerca-se de um cuidado frequente e uma equipe contínua que potencializa o produto, como os cenários de J. C. Serroni, os figurinos de Telumi Hellen e a iluminação de Rodrigo Palmieri, que, aos poucos, ajudaram a definir a assinatura de Ribeiro como diretor.

Tanto para o público como para o artista, teatro é exercício, é frequência e, acima de tudo, risco. Com Projeto Clarice, Cesar Ribeiro, apoiado por quatro ótimas atrizes, realiza o seu melhor espetáculo. O diretor dialoga com a consagrada escritora sem mitificá-la ou se deixar assombrar pelo seu fantasma. Talvez parte da imensa legião de fãs da autora, acostumada a ver a sua subjetividade levada à cena com mais previsibilidade, saia incomodada do teatro, mas, provocar essa inquietação, é mais uma prova de que Ribeiro compreendeu Clarice.


Nota:
As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Sobre
Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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